18 abr Galileia, 15 anos depois: No centro e na periferia do mundo
Em fevereiro de 2003, lancei o livro de contos Faca, pela Cosac Naify. Meus editores foram Augusto Massi, Davi Arrigucci Jr. e Rodrigo Lacerda. Arrigucci funcionou para mim como D.V. Grigorovich para Tchekhov, me tirou do escuro. Devo à generosidade desse mestre. Depois de publicar mais dois livros de contos na Cosac, Rodrigo Lacerda me falou: agora quero ler você em longa-metragem. Estava lançado o desafio ao contista por convicção.
Há anos eu alinhavava um romance, mesmo achando que se gasta muitas palavras nesse gênero de escrita. Tirei os papéis da gaveta e o primeiro desafio foi romper com a mordaça do universo sertanejo, chegar ao urbano, percorrer uma trajetória semelhante à minha. Há quinze anos, Galileia surgiu como um olhar novo sobre o Sertão. Os personagens Adonias, Davi e Ismael vêm de Nova York, Toulouse, Londres, Lisboa e Oslo e se chocam com a terra onde viveram a infância e a adolescência. O lugar assemelhado ao espaço mítico grego e hebraico revela-se contaminado pelos vícios da tecnologia, marginal como as periferias das cidades.
Quando publiquei o primeiro livro de contos em 1997, As noites e os dias, o poeta Alberto da Cunha Melo escreveu que o meu Sertão não tinha endereço certo, estava em toda parte, e que as personagens eram neuroticamente urbanas. Alberto profetizou e essa tornou-se a questão de minha literatura.
Alguns livros brasileiros estabeleceram linguagem, espaço, tempo e demarcaram conceitos sociológicos e históricos do Sertão: O sertanejo, de José de Alencar; Os sertões, de Euclides da Cunha, apesar dos preconceitos, erros e equívocos; as obras de vários autores do romance de 1930; o lírico e metafísico Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; O romance d’A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, com sua heráldica e estilo picaresco. Galileia busca se inserir nessa tradição e ser um marco na literatura sobre o Sertão. Foi bem recebido por leitores e crítica, reconhecido como obra contemporânea, que atualiza o Brasil além das fronteiras de São Paulo e Rio de Janeiro.
No começo me incomodava ser chamado de regionalista. Via no comentário a intenção de diminuir o valor da obra, a tentativa de fixá-la um século atrás no Movimento de 1930, como se nada tivesse mudado e nós do Nordeste, por obrigação e sina, continuássemos presos a conceitos e linguagem obsoletos. Descobri mais tarde que se tratava de um projeto de anulação, desde a colônia, e que se repete sempre, por exemplo, nas eleições recentes e na escravização de baianos no Rio Grande do Sul.
Rubens Figueiredo e eu participávamos de uma mesa sobre literatura brasileira, quando me fizeram a tradicional pergunta: você se considera um escritor regionalista? Rubens pediu o microfone e afirmou ser um regionalista, jamais um universalista. Ele dedica-se a traduzir a literatura russa e sabe que apesar da divisão entre eslavófilos e europeizados, os escritores russos se preocupavam em escrever para leitores da Rússia. Refletiam sobre o seu povo e chegavam às grandes questões humanas, sem veleidades universalistas. Galileia é um livro sobre o Brasil, como o restante de minha literatura.
A questão é mais séria do que se imagina. O empenho de intelectuais e acadêmicos de diversas áreas – sociólogos, antropólogos, críticos literários – em folclorizar e subestimar o valor da produção cultural das regiões brasileiras, fora do eixo Sudeste que detém o poder econômico e da informação, é bastante desleal e antigo. Cabe na análise das causas uma leitura política, por serem indissociáveis. Do Rio de Janeiro vieram os comandos que reprimiram a Revolução de 1817 e a Confederação do Equador, movimentos republicanos emancipatórios do Nordeste. Também do Sudeste chegaram as forças militares que esmagaram Canudos e veio a orientação para bombardear o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, comunidades que sonhavam com um novo modelo de sociedade.
Galileia foi publicado pelo selo Alfaguara, que hoje está vinculado à Companhia das Letras. Marcelo Ferroni tornou-se o meu editor, depois da Cosac. Trabalhamos juntos há 15 anos, numa relação de amizade e estímulo à escrita. Sempre fui bem tratado pelos editores. O romance teve traduções para o francês, espanhol, italiano e hebraico. Durante os governos Lula e Dilma, havia um projeto de tradução de autores brasileiros, e de colocá-los num circuito de viagens e feiras internacionais. O produtor Rodrigo Teixeira e a Conspiração Filmes compraram os direitos de Galileia para o cinema, mas não foi rodado. Cumpre-se o desejo de Héctor Babenco, o de que Galileia nunca fosse transformado num filme.
A produção de artigos, resenhas, ensaios, dissertações de mestrado e doutorado sobre Galileia é muito alta. O livro continua vivo, lido, adotado em cursos, cortejado para filmagem.
Termino com trecho de uma carta comovente que me escreveu Miguel Sanches Neto: “O romance tem uma beleza áspera, própria do Sertão, e coloca o leitor no interior de uma família que se alastra pelo mundo, revivendo um epicentro que se desfez e impondo um novo tempo em que já não se escondem as fraquezas, em que a própria fragilidade exposta talvez seja o último ato de coragem, de força e de revolta contra o destino”.
Imagem: Hélia Scheppa/ Acervo Pernambuco
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