O corpo enfermo do planeta | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
Texto publicado originalmente na Revista Continente, de junho de 2016.
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O corpo enfermo do planeta

A Schneider Carpeggiani

O silêncio está com os dias contados.

(Parece a enigmática sentença de um oráculo. Qual o significado do silêncio em tempos de uma guerra de rugidos?)

Agora, quando ninguém se demora entre os rochedos…

Poema de Neruda, imaginando que na falta do silêncio não se escutará a voz da poesia, dos poetas vivos e mortos.

A menos que os nossos sentidos contaminados, o martelo, o estribo e a bigorna da audição, vibrem em cadência sob o estresse do ruído, e se confundam as formas.

Para alguns o poema é a experiência do abandono; para outros, do rigor. O poema é mediação: graças a ele, o tempo original, pai dos tempos, encarna-se num momento, afirma Octavio Paz.

Buzinas e freios, milhões de decibéis em trios elétricos, zapps, chamadas telefônicas, bips de respiradores, vruuum, rrraaat, crrreeec, helicópteros, trens, vagões, lanchas, roçadeiras a gasolina, tratores, guindastes, empilhadeiras, e oito bilhões de humanos alheios aos apelos de Whitman.

Ecoem estes versos,
os tons das almas e as frases das almas.
Continuem falando, faladores!
Cantem, cantores! Escavem, modelem
as palavras da terra!

Não compreendem a santidade do poeta, seus versos revolucionários, o silêncio estático do movimento. E acometidos pela ignorância proclamam o barulho, a falsidade, as apostasias, as palavras condenadas à tecla delete, sem verdade ou fé. Aplaudem os discursos dos políticos corrompidos pela mentira, as falas dos atores viciados em truques, a prosa de escritores anódinos, e a justiça enferrujada, cega apenas de um olho – com o outro enxerga e manipula os interesses próprios.

Possesso Fernando Pessoa esbraveja.

Tirem esse lixo da minha frente!
Metam-me em gavetas essas emoções!
Daqui pra fora, políticos, literatos,
Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs,
Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida.

O poeta tornou-se um enfermo entre os escombros do silêncio, constipado de palavras, amordaçado e deprimido pelo que soa mais alto e faz calar as epifanias em sua garganta.

Sobressaem as criaturas esmagadoras, espelhadas e sem temperatura. Desprovidas de neurônios sensitivos, sem registro de afeto, elas rugem e amedrontam, escarnecem e manobram as engrenagens.

O sagrado corpo da Terra adoece ao contágio dessas bactérias, as formas de sensibilidade fraquejam.

João alertara sobre esses, no livro do Apocalipse.

Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente. Quem dera fosses frio ou quente!

Assim, porque és morno, e nem és quente nem frio, estou a ponto de vomitar-te da minha boca;

Pois dizes: estou rico e abastado, e não preciso de coisa alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu.

O silêncio poderia ser o remédio para o corpo enfermo do planeta? Um grande silêncio de imobilidade, aquele que precede a criação. Solene, com o sim no lugar do sim e o não no lugar do não. E só e bastante. Porém, o seu tempo foi declarado extinto, aprisionaram-no como libélulas em camadas de calcário fóssil. Na sua morte calam as vozes de gerações e desaparece o que a natureza possui de mais oculto e misterioso. Anunciam o derradeiro silêncio, prenúncio à alienação do homem contemporâneo, que precisa reaprender a sentir. E a desejar além das falas e dos falsos inúteis, conforme escreveu o poeta Wordsworth.

O mundo nos envolve; tarde ou antes,
Na compra e venda esvai-se nosso bem.
Pouco de nosso a Natureza tem;
Jogamos a alma fora, vis mercantes!
Os mares, que ao luar se expõem galantes,
O uivante vento, que ora está, porém,
Encolhido qual flor dormente além…
Disso, de tudo, estamos dissonastes;
Nada nos move. – Oh Deus! Antes fosse eu
Algum pagão em gasta fé nutrido!
Assim, num doce prado, qual ateu
Jamais me sentiria tão perdido:
Iria ver no mar surgir Proteu,
E ouvir Tritão no búzio retorcido.

* Texto publicado originalmente na coluna Entremez, da Revista Continente, junho/2016.

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2 Comments
  • Amaro Agostinho dos Santos Junior
    Posted at 10:05h, 29 junho Responder

    Texto maravilhoso, incrivelmente tocante e real como poucos hoje em dia…Fez-me sentir o quanto preciso silenciar … e quem sabe através do mergulho do silêncio redescobrir-me outro ser , melhor que o de agora!

  • Amaro Santos
    Posted at 10:23h, 29 junho Responder

    Como é bom quando somos tocados pela poesia ! Nesses momentos nos aproximamos ao máximo de nós mesmos , do que realmente somos , essencialmente. Sua crônica , Ronaldo, fez-me sentir o quanto preciso silenciar para existir de um modo diferente, provavelmente de um jeito melhor que o de agora. Para silenciarmos precisamos ter coragem de abrir mão do repertório repetitivo ao qual nos submetemos diariamente. É preciso deixar de ser esse “normal” que embota nossa visão de mundo ou compreensão de quem somos de fato !

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