18 out E mesmo assim continuamos escrevendo
Dizem que o chinês Lao Tsé, que viveu no século VI antes de Cristo, abandonou a vida na corte quando completou quarenta anos de idade. Recolheu-se à floresta até os oitenta anos e, nesse tempo de ascese e meditação, escreveu o Tao Te King, livro que é a base do pensamento e da educação chinesa, junto com as obras do filósofo Confúcio. Lao Tsé, fiel ao taoísmo que ensina que pelo não agir tudo é agido, entregou o seu manuscrito a um guarda de fronteira, nada falou sobre ele, nada recomendou, e foi embora. Por conta desse misterioso não fazer ou não interferir, que tudo realiza e resolve, o livro cumpriu seu destino, virou ensinamento para milhões de pessoas, e chegou até nós.
Quem é o nosso guarda de fronteira? A quem entregaremos os nossos manuscritos ao abandonarmos a floresta? Eis a metáfora: porque ninguém mais enche de silêncio o coração e contempla isento de desejos o incessante vaivém do mundo. O escritor busca comunicar-se com seu público. Uns de forma serena. Outros, desvairados, correm atrás de quem os leia, ou escute, ou aplauda.
Ao mesmo tempo em que precisa do exercício silencioso da criação, de estar sozinho trabalhando, o mundo cobra cada dia mais que ele chegue ao limite de sua resistência, cumprindo uma maratona de conferências, entrevistas, artigos, uma exposição do corpo e da alma para ser visto, não esquecido, lido, cortejado. Já não existem florestas, nem guardas. Poucos sobrevivem ao novo enigma da esfinge: preserva-te e serás esquecido ou mostra-te e serás devorado.
O prazeroso ou atormentado exercício da escrita tem pouco a ver com o giro pelo mundo, à cata de leitores. Pouco a ver com a caça aos prêmios. São nuvens de palavras / meu tormento. / O peito em desejo, / sempre aberto: / fogo estranho que reluz / na noite escura / de São João da Cruz. / Nuvens: / rebanho de pensamentos. / Sopra do céu um vago lamento, / como um risco de luz, / na noite escura / de São João da Cruz*.
Os artistas que não assinaram suas obras, anônimos sem temor ao esquecimento, se ergueram às alturas sem desejos, e encheram de silêncio o coração. Talvez esses, talvez, tenham conhecido a alegria de criar pela mesma razão porque respiram, pulsam e amam. Criar para viver e viver para criar. E só. E tanto. Rolar dentro de si / como a pedra no poço. / Do arco do corpo / desencadear o sopro. / Avistar / onde o olhar não alcança: / ler os passos de Deus / dentro da dança*.
Buscar uma medida exata do que significa a criação na arte. Há diferenças no ato de criar ou tudo é um mesmo abandono de si? O artista Raimundo Aniceto, da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto, do Crato, deu-me uma lição que nunca esqueci.
Fui visitá-lo numa véspera da festa de Santo Antonio. Ele se arrumava para a noite que passaria sem dormir, tocando e dançando. A esposa cozinhava o jantar e o olhava de vez em quando, enternecida. Eu fazia perguntas sobre a música que ele tocava, sobre a dança, a história da banda. Vasculhava lá dentro dele para descobrir as pistas de um gênio do povo. Acredito que os meus elogios e as perguntas o incomodavam. Raimundo parecia indiferente à personificação do artista que eu traçava para ele. De repente, levantou-se da cadeira, me chamou, e eu acompanhei-o até um quarto fechado. Ele abriu a porta, revelando o interior do cômodo. Não compreendi. Pensei que me mostraria instrumentos raros, que confeccionara e tocava. Ele apontou sacos de arroz, feijão e milho empilhados. Eu plantei e colhi tudo isso, falou-me sorridente.
Bela lição que jamais esqueci. Todos os ofícios são sagrados, e o escritor não é mais que o padeiro, nem o carpinteiro, nem o pintor de paredes. Deus não prefere o músico ao pescador, como preferiu o Abel que pastorava ovelhas ao Caim que cultivava a terra. O sábio tudo realiza, e nada considera seu. Tudo faz, e não se apega à sua obra, escreveu Lao Tsé. Talvez por isso tenha deixado os seus originais nas mãos de um desconhecido, sem importar-se com o destino que teriam. O guarda não era um editor renomado, não programou lançamento, não traçou planos de mídia, não inscreveu o livro em concurso literário. E mesmo assim ele vive há dois mil e seiscentos anos.
Mas isso é uma lenda e não existem guardas de fronteira como os antigos. O poeta busca a medida entre o ato solitário da criação e o mundo que o ignora ou traga.
Dessoletro-me sozinho
Neste canto de sala.
O vulto vem e espreita.
Mais nada… *
* Everardo Norões, no livro A Rua do Padre Inglês
Daniel Albuquerque
Posted at 11:22h, 26 outubroCoincidentemente ou não, após a leitura desse artigo, li um texto chamado “A morte do autor” de Roland Barthes, pela abertura à analogia entre o texto com o relato sobre Lao Tsé, voltei aqui para comentar. Lao Tsé agiu ao escrever e entregar o manuscrito, contudo buscou não interferir como autor do texto junto ao guarda de fronteira. Essa não interferência remete exatamente a uma possível tentativa de não querer fazer incidir a figura de sua pessoa sobre o conhecimento do manuscrito, mas tentar se tornar – na medida do possível – imparcial, para que o que reste ao leitor não seja a reflexão sobre a intenção, vida e características do autor, mas sim que triunfe o conteúdo do manuscrito, ocasionando a morte de Lao. Resta saber se é possível morrerem os autores, espero que não, “assim continuamos lendo”.