02 nov O maior de todos os santos
Quando havia feiras de rua semelhantes às da Idade Média, no Crato e em Juazeiro do Norte, as duas cidades eram tomadas por artesãos: ceramistas, flandeiros, tecelões, moveleiros, seleiros, pessoas que trabalhavam o couro, a palha do buriti e do babaçu, o agave e a lã vegetal. A região ainda não fora invadida pelos eletro-eletrônicos vindos do Paraguai, nem pelas quinquilharias importadas da China.
Os artesãos populares sobreviviam do fabrico de utensílios domésticos como potes, quartinhas, panelas, colchões, e arreios e cordas. As cidades mudaram, o campo esvaziou-se, o artesanato perdeu sua razão funcional e adquiriu valor decorativo. Proliferaram as motos, os cavalos deixaram de ser meio de transporte e ganharam status nas vaquejadas. As panelas de alumínio, os plásticos e acrílicos venceram a concorrência com os utilitários de barro.
Para que fabricar caixotes de madeira e malas de armazenar rapadura, se já não existem engenhos nem consumo de rapadura como antigamente? A história do homem pode ser acompanhada pelo que ele fabrica e deixa de fabricar, ao longo do tempo. Máquinas de datilografia viraram peças de museu, da mesma maneira que vitrolas e câmeras super-8. Vez por outra encontram um novo uso para o que foi encostado. Os DJ até reinventaram um jeito de tocar os discos de vinil.
Todo esse preâmbulo para falar de uma ceramista de Juazeiro do Norte, conhecida pelo nome de Ciça do Barro Cru, porque não levava ao forno os objetos cerâmicos de sua criação, deixando-os secar ao sol. Conheci-a quando fazia ponto de venda junto a um canal, construído pela prefeitura do Crato para conter as águas do rio Granjeiro, que antes corriam livremente entre pedras e mata ciliar. Ciça se apresentava como uma extravagante romeira do Padre Cícero: vestido de algodão colorido com pregas, cintura bem alta e saia cobrindo os joelhos; chapéu de palha na cabeça, guarda-sol, cabelo preso por marrafas e bastante óleo de coco; lábios pintados de vermelho e faces com círculos de ruge carmim.
Sentava num caixote de madeira, o mesmo em que transportava sua arte. A vida meio rural e meio urbana do Cariri era representada em mulheres costurando, fazendo renda, homens com enxada no ombro, burrinhos, lagartixas com rabo de borracha, pavões de cauda de papel laminado e areia prateada, rádios, panelas, galinhas, papagaios… Não havia uma única coisa que o freguês imaginasse que Ciça não fosse capaz de executar para ele. Contemporânea, incorporava ao barro o lixo urbano, isso que virou moda reciclar. Performática, inventava cenas, ambientes e falas para seus personagens. Ousada nas cores, nos materiais, na invenção.
Certo dia, cheguei para comprar. Vi a cerâmica de uma mulher com uma perna amputada, apoiando-se numa muleta, uma trouxa de roupa própria das lavadeiras acomodada na cabeça, um menino no braço, mamando. Perguntei quem era a figura.
– É uma infeliz, me respondeu. – O marido deixou ela com um filho de peito, e a coitada ganha a vida lavando roupa. Sustenta a família com esse ganho pouco. Como se não bastasse, foi atropelada por um carro e perdeu uma perna. Não é mesmo uma desgraça?
E se pôs a chorar. Tentei consolá-la, perguntei se era alguma conhecida, mas ela respondeu que não. Imaginara a história. Artistas imaginam um mundo e mergulham nele, correm o risco de ruptura com a realidade. Mas isso nunca aconteceu com Ciça, felizmente. Ela não quis me vender a cerâmica, se pudesse, não venderia uma peça de sua criação, falou quando propus a compra. O dinheiro que as pessoas pagavam era pouco. Melhor ficar com tudo guardado em casa, mesmo que passasse fome.
Sem condições de concorrer com os utilitários, o barro sobrevive como arte, graças às Ciças e outros artesãos populares. No mesmo Juazeiro do Norte, outra Ciça ganhou o sobrenome “Barro Cozido”, porque leva ao forno suas peças cerâmicas, que ficam mais resistentes e duráveis depois de queimadas. Virou a Ciça do Barro Cozido. Um dia, pedi que fabricasse para mim vários santos, quase a metade da corte celeste. Ela escutava silenciosa, gravando a encomenda na cabeça, pois não sabia ler nem escrever. Assinava o trabalho com um carimbo que mandei fabricar para ela. Depois de recitar o nome de Maria, José, Jesus, São Francisco, São Sebastião, São Miguel, Santa Luzia e por aí afora, pedi que fizesse um Padrinho Cícero. Ela olhou para mim espantada.
– Faço tudo, mas meu Padinho Ciço eu não faço não.
– Por quê? – perguntei sem entender a cisma.
E ela, convicta na fé:
– O senhor acha que sou doida de botar meu Padinho Ciço pra queimar?
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