No dia em que os cratenses recusaram Godard | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
690
post-template-default,single,single-post,postid-690,single-format-standard,bridge-core-3.1.3,qi-blocks-1.3.3,qodef-gutenberg--no-touch,qodef-qi--no-touch,qi-addons-for-elementor-1.8.1,qode-page-transition-enabled,ajax_fade,page_not_loaded,,qode-title-hidden,qode_grid_1300,hide_top_bar_on_mobile_header,qode-content-sidebar-responsive,qode-theme-ver-30.2,qode-theme-bridge,disabled_footer_top,disabled_footer_bottom,qode_header_in_grid,wpb-js-composer js-comp-ver-7.9,vc_responsive,elementor-default,elementor-kit-2068

No dia em que os cratenses recusaram Godard

Nem me lembro se havia completado 14 anos. Eu buscava filmes de impacto, mesmo incompreensíveis. Às vezes era derrotado pelo cineasta ou pelo público, como aconteceu na sessão do filme A chinesa, do francês Jean Luc Godard. Profundamente irrealista, supostamente tratando do racha entre o comunismo chinês e o russo, o filme provocou curto circuito nos cérebros prosaicos dos cinéfilos cratenses. Depois de meia hora de projeção, no Cine Cassino, todos abandonaram a sala e ocuparam o hall do velho sobrado. Uma chuva forte interditava a praça Siqueira Campos em frente, e o Café Líder, à esquerda. As pessoas preferiam olhar a chuva e os relâmpagos cortando o céu, a assistir a película projetada. Era uma quarta-feira, sessão das 19h30. Sozinho na sala, sem compreender o que via, fui abordado pelo bilheteiro.

– Vamos desligar o projetor.
– Por quê?
– Todo mundo foi embora.

Levantei-me aliviado. Eu não alcançava a linguagem do filme, mesmo assim teimava em continuar assistindo. Saí para o tumulto do hall e engrossei o número de espectadores dos fenômenos naturais. Parecíamos felizes com nossa escolha, lamentando apenas não termos um bom café. A noite ficou célebre pela recusa cratense ao cinema de Godard, pelo cataclismo que arrasou a cidade e por uma tragédia. Ao atravessar a rua da Vala, uma jovem caiu dentro do canal e foi arrastada pelas águas turbulentas. Seu corpo encontrado no meio de um canavial tinha sido destroçado pelos choques com as pedras e os troncos das árvores.

No Recife, onde me preparo para o vestibular de medicina, leio e coleciono os suplementos culturais do Jornal do Commercio, encho minha cabeça de cinema novo, neo-realismo e nouvelle vague. A cidade só falava no filme Teorema, do diretor italiano Pier Paolo Pasolini. Descubro ser o mesmo que havia inquietado o adolescente provinciano com sua leitura do Evangelho de São Mateus. Nesse tempo, ia-se aos cinemas com devoção. O Recife possuía salas e sessões exclusivas para filmes de arte. As filas desceram a Conde da Boa Vista quando foram exibidos no São Luiz, em temporada de semanas, Roma e Morte em Veneza, e até o Satyricon, de Fellini. Mas, nenhum filme causou tanto estupor na sociedade como Teorema. Talvez, O Último Tango em Paris ou O Império dos Sentidos, com abordagens escandalosas para a época.

Em Teorema, o núcleo de conflitos é uma família burguesa. Pai, mãe, filhos e empregada não serão os mesmos, depois que um visitante anunciado por um anjo atravessa suas vidas. De forte conotação simbólica, cada personagem representa um segmento da sociedade italiana, exposta em suas fragilidades. Vivíamos no Brasil o período mais repressivo da ditadura militar, a Igreja Católica pregava a teologia da libertação, o feminismo assentava suas bases e, através da contracultura, ensaiava-se uma revolução sexual. Terreno fértil às ideias de Pasolini, num mundo dicotomizado em fascismo e comunismo, direita e esquerda, deus e diabo, bem e mal.

Em 1975, Pasolini é assassinado. O ator que interpretara o anjo da anunciação em Teorema reconhece o corpo destruído. Durante 40 anos a trágica história se reconta em diferentes versões. Giuseppe (Pino) Pelosi, assassino confesso, negará anos depois que tivesse sido o único executor. Surgem teorias conspiratórias. Antes de morrer, Pasolini renegara sua Trilogia da Vida – Decameron, Os Contos de Canterbury e As Mil e Uma Noites –, por sentir-se vítima do capitalismo e da indústria cinematográfica.

Nunca assisti Saló, último filme de Pasolini. Os cinemas se transformaram em supermercados e não consigo ver filmes em shoppings. Preciso de encantamentos que já não encontro nas salas de projeção. Sou parecido com a ingênua Cecília, heroína de A Rosa Púrpura do Cairo, do cineasta Wood Allen. Perco-me dentro dos enredos e me transformo nos personagens da tela.

Tags:
,
[social_share show_share_icon="yes"]
No Comments

Post A Comment