04 jan No trânsito
Que maravilha, uma visita desejada! Primeiro, recebemos o anúncio de que ela está para chegar. Começam os preparativos: arrumamos o quarto, forramos a cama com os melhores lençóis, fazemos as compras de supermercado pensando no que mais agrada, abarrotamos a geladeira e o freezer, esboçamos uma agenda de passeios e até consultamos a previsão do tempo. No dia, um pouco antes da hora, me junto ao círculo de pessoas que esperam no desembarque do aeroporto. O riso se escancara, os braços são poucos para tantos abraços. Em meio às perguntas nem escuto as respostas. O que vale é a excitação, o reboliço das falas, os olhares para descobrir o que mudou na pessoa – se mudou alguma coisa –, a pressa em desvelar em poucos minutos o que foi programado para durar quinze dias.
Começa o segundo round da visita: o convívio. Nesse primeiro tempo foram aparadas arestas, outras surgiram, descobre-se que ela ou ele já não come carne, prefere vegetais, e apenas duas vezes na semana se arrisca num peixe. Que já não se interessa por literatura contemporânea, lê os filósofos, escuta música barroca e precisa de um tempo diário para a meditação. No carro, você se lembra de cancelar o passeio no catamarã pela Praia dos Carneiros, pois ele ou ela não aprecia o forró que toca a bordo. Vem na ponta da língua a pergunta se ele ou ela ainda consome uma caipirinha, mas não se arrisca a tanto. Melhor esperar quieto.
A visita comenta o quanto a cidade mudou nesses anos, que destruíram o patrimônio arquitetônico, que isso nunca aconteceria numa cidade europeia como Paris – cita logo que cidade! –, mas é comum de acontecer no terceiro mundo. Aí você engole seco, odeia a história de primeiro e terceiro mundo, odeia quem fala: é coisa de cinema! Sente vontade de perguntar o que ele ou ela veio fazer no terceiro mundo, voando na classe econômica. Deixa por menos, são amigos e estudaram juntos até se formarem, ele ou ela vive fora do Brasil, ralou para garantir um bom emprego e quarenta metros quadrados num bairro razoável de Paris. Logo que cidade!
O trânsito não flui, há fortes chances de consumirem duas horas do aeroporto até o apartamento, você fala pelos cotovelos, tenta distrair sua visita do tumulto na pista.
– É sempre assim?
– Não! – você mente envergonhado. – Alguma coisa muito grave aconteceu. Talvez um acidente fatal. Ou um protesto.
Um descuido e cai num buraco. Por bem pouco não estoura um pneu.
– O que foi isso?
– Um desnível na pista, eu acho – mente pela segunda vez. – O asfalto que vendem ao Brasil não é o mesmo que vendem à França.
– Será verdade?
– Dizem.
– Li que a turma do ministério embolsa uma parte do dinheiro e compra asfalto de terceira.
Corrupção? De novo? Não basta o que mostram na TV? A alegria e o ímpeto do reencontro dão sinais de acabrunhamento. Bem que a mulher havia sugerido para a visita um hotel de preço médio, num lugar tranquilo e silencioso. Existe lugar tranquilo e silencioso na cidade? Você tem certeza de que não existe, mas se ele ou ela se atrever a insinuar isto, abre a porta do carro e pede que desça.
– Camus comparou Recife a Florença, quando se hospedou aqui em 1949. Ele estava com febre ou talvez delirasse.
– Antigamente, o Recife parecia mesmo com Florença, embora o poeta João Cabral o achasse parecido com Sevilha.
– Com Sevilha? Pensando bem, talvez o calor insuportável seja igual.
– Por que debocha?
– Por nada. Vocês nunca perdem a mania de grandeza. Ainda acreditam que os rios Capibaribe e Beberibe se juntam para formar o Atlântico?
O trânsito para de vez. Quinhentos metros à frente atearam fogo em pneus e uma coluna de fumaça preta sobe à procura do céu. Os amigos levantam a cabeça, perscrutando o futuro. No final de tarde, já se avista no poente um risco de lua e uma estrela. Por sorte, a fumaça não encobriu os astros. Os dois aproveitam e olham.
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