25 jan Sobre técnicas de torrar café e outras técnicas
Já não existe a profissão de torradeira de café. Ninguém mais escuta falar nessas mulheres que trabalhavam nas casas de família, em dias agendados com bastante antecedência. As profissionais famosas pela qualidade do serviço nunca tinham hora livre. Cobravam caro e só atendiam freguesas antigas. Não era qualquer uma que sabia dar o ponto certo da torrefação, reconhecer o instante exato em que os grãos precisavam ser retirados do fogo. Um minuto a mais e o café ficava queimado e amargo. Um minuto a menos e ficava cru, com sabor travoso. “Pra tudo na vida existe um ponto certo”, diziam orgulhosas do ofício, mexendo as sementes no caco de barro escuro, a colher de pau dançando na mão bem treinada, o fogo aceso na temperatura exata.
Muitos profissionais se especializavam na ciência de pôr um fim: os que mexiam a cocada no taxo de cobre, os que fabricavam o sabão caseiro de gorduras e vísceras animais, os que escaldavam a coalhada para o queijo prensado, os que assavam as castanhas. Nos terreiros de candomblé, onde se tocam para os orixás e caboclos, os iniciados sentem o instante em que a toada e o batuque alcançam o ponto de atuação, o transe que faz o santo descer e encarnar no seu cavalo.
Nenhum movimento é mais complexo que o de finalizar. Nele, estão contidos o desapego e a separação, o sentimento de perda e morte. Sherazade contou suas histórias durante mil e uma noites, barganhando com o esposo e algoz Sheriar o direito de continuar vivendo e narrando. Mil noites é um número finito. O acréscimo de uma unidade ao numeral “mil” tornou-o infinito. Mil e uma noites se estendem pela eternidade. Sobrepondo narrativas, entremeando-as com novos contos, abrindo veredas de histórias que se bifurcam noutras, mantendo os enredos num contínuo com pausas diurnas, porém sem o ponto final, Sherazade adiou o término e a morte. De maneira análoga, Penélope tecia um manto sem nunca acabá-lo, acrescentando pontos durante o dia e desfazendo-os à noite. Também postergava o momento.
J. M. Coetzee queixa-se do peso dos romances, do esforço de carregar durante meses personagens que vergam suas costas e o aniquilam. William Faulkner refere a ligeireza com que os personagens passam por ele, céleres, precisando de uma atenção permanente para não perdê-los na fuga. Uma artesã do barro de Juazeiro do Norte chora quando proponho comprar a cerâmica representando uma mulher com muletas, uma criança no peito, o feixe de lenha na cabeça. Conta a história que representou naquela peça simples, sente pena de separar-se de sua criatura. O xilogravador Gilvan Samico me apresenta os mais de cem estudos e as provas de autor até chegar à gravura definitiva. Olha para os lados e me confessa que se pudesse não venderia nenhuma das impressões. Confessa os dias de horror vividos até chegar ao instante em que se decide pela prova definitiva, quando o trabalho é considerado concluído e o criador experimenta a estranheza diante do que não mais lhe pertence.
Que valor possui o esposo de Sherazade, comparado à narrativa que a liberta da morte? Talvez apenas o de ser o pretexto para o mar de histórias que a jovem narra ao longo de mil e uma noites. E o que se segue a esse imaginário fim? O que ocupa a milésima segunda noite, supostamente sem narrativas? Eis a pergunta que todos os criadores se fazem. O que se seguirá ao grande vazio? Deus descansou no sétimo dia após sua criação. O artista descansa, ou apenas se angustia pensando se a criatura que pôs no mundo está verdadeiramente pronta, no ponto exato de um grão de café torrado por uma mestra exímia?
Afirmam que a flecha disparada pelo arqueiro zen vai sozinha à procura do alvo. Num estado de absoluta concentração, arqueiro, arco, flecha e alvo se desprendem da energia do movimento e alcançam o ponto exato. Anos de exercício levam ao disparo perfeito. O escritor trabalha com personagens que o obsedam, alguns chegando a cavalgá-lo como os santos do candomblé. Sonha os sonhos do outro, numa entrega do próprio inconsciente à criação. Enquanto se afoga em paixões, com a mão direita tenta manter-se na superfície e salvar-se; com a mão esquerda anota frases sobre ruínas. Busca a técnica exata de um arqueiro zen, a perícia de uma torradeira de café. Dialoga com a morte como Sherazade, mantém a respiração suspensa, negocia adiamentos e escreve.
Num dia qualquer, sem que nada espere e sem compreender o que acontece à sua volta, um editor arranca papéis inacabados de sua mão.
SIDNEY WANDERLEY DE LOPES LIMA
Posted at 19:18h, 06 fevereiroMeu caro Ronaldo:
Uso este espaço para lhe dizer que devorei neste domingo o seu FACA. Gostei enormemente de uns seis ou sete contos do livro.
O mais fabuloso deles é, para mim, “Redemunho”, digno de figurar em qualquer antologia de contos tupiniquim. Descobri um escritor com amplíssimo domínio da técnica narrativa, capaz de surpreender o leitor com desfechos absolutamente inesperados, e que sabe dar voz e vez a mulheres que agonizam sob o tacão de homens que nasceram para o exercício desmedido e despudorado da opressão. Ótimos, também, “A espera da volante” e “O dia em que Otacílio Mendes viu o sol”. Achei um pouco avara a avaliação do Arrigucci, no posfácio. Não há que se criar boa expectativas nem ficar à espera de. Seu livro revela-nos um assombroso e inconteste talento literário. Tanto que já encomendei O LIVRO DOS HOMENS e GALILEIA. Um forte abraço do seu admirador e entusiasta, o SIDNEY WANDERLEY