Nem tanto a Jesus, nem tanto a Judas | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Nem tanto a Jesus, nem tanto a Judas

Nas ruas do Crato e de Juazeiro toda gente fala que Pai Véi será morto. Pois morra! Morrer é uma condição pra nascer de novo. Desde a quarta-feira de trevas as viúvas de Pai Véi desfilam mascaradas, as barrigas enormes, os vestidos sujos, sombrinhas partidas, esmolando comida e cachaça para a celebração da morte do marido e pai. Os filhos caretas amedrontam as crianças com máscaras de couro de bode, plástico ou papelão pintado. A miuçalha chega perto dos caretas, atiça, joga pedras e corre com medo de levar peia. Os caretas batem sem pena com seus relhos de crina de cavalo, semelhantes ao tirso dionisíaco. Se algum marmanjo se atreve a roubar a quinta do Pai Véi, pode sair no lucro ou levar uma surra.

E quem é o Pai Véi, Pai Véio ou Pai Velho, que irá morrer no Sábado de Aleluia ou no Domingo da Ressurreição? O Judas, respondem seus filhos e suas esposas grávidas, as vozes abafadas pelas máscaras. Os brincantes populares ignoram a origem da brincadeira. Repetem o que os mais velhos celebravam, pouco ligando se estudiosos chamam aquilo de cultura primitiva, quando o correto seria chamá-la de arcaica. Ao invés de elucubrarem, eles brincam e se divertem. Mas, o que significa o boneco com a cabeça de estopim, preso a um mastro, num sítio improvisado – a quinta de Pai Véi –, numa praça ou num terreno baldio, cercado de canas e bananeiras roubadas na vizinhança? Nenhum careta da matança do Judas ouviu falar no sacrifício do Rei Divino, nem conhece a geografia da Mesopotâmia, do Egito ou da Boêmia, onde esse mesmo ritual era praticado. A celebração se repete por imitação, mesmo que desprovida de seus antigos significados.

Na Antiguidade, era necessário sacrificar o rei que envelhecera “para que sua decrepitude não acarretasse um desfalecimento correspondente da energia vital dos cereais, do gado e dos homens”. Se não fosse o próprio rei, o seu simulacro, um boneco de pano, ou de folhas, costume que se manteve no norte europeu até bem pouco tempo, saudando a chegada da primavera. O cristianismo incorporou a festa pagã ao seu calendário, cuja data coincidiu com Paixão e Ressurreição do Cristo. Os brincantes se encarregaram de batizar como Judas esse rei sacrificado.

O carnaval se vai e com ele a festa da carne. Chegam a quaresma magra, o peixe e a contrição pelos excessos cometidos. O vermelho dá lugar ao roxo. Aproxima-se o dia em que serão representados, mais uma vez, a vida e a morte de outro Rei Divino, O Cristo. Durante uma semana se reproduzirão seus passos, a subida à cruz, agonia e morte, descida em meio ao pranto das mulheres, a gloriosa ressurreição. No ritual da missa, o corpo do Cristo será repartido em pedaços e comido, seu sangue dividido em poções e bebido.

O homem que o traiu foi Judas, pela quantia de trinta dinheiros, entregando-o com um beijo na face e um olhar de esguelha. Todos os brincantes – caretas e esposas prenhes – conhecem uma árvore que não possui formato de cruz nem é a árvore da salvação, onde o Pai Véi será pendurado e enforcado, depois de um julgamento público e da leitura de seu testamento burlesco. O ritual sagrado se transforma em profano. Sem distinguir-se do Rei Divino, O Judas também será morto, o corpo dilacerado, os membros esquartejados, sob os gritos da turba insana.

As bandas cabaçais e as orquestras improvisadas puxam o cortejo pelas ruas das cidadezinhas nordestinas. Dançando atrás do jumento, que carrega o boneco espalhafatoso e de sorriso aberto, os caretas agitam os relhos, correm atrás das crianças, pedem dinheiro e roubam. Embriagados e possessos arrastam O Pai para a quinta. As viúvas choram e mostram as barrigas indecentes, reclamam do que O Pai Velho fez nelas. É o ciclo da fertilidade. O carnaval recomeça. A vida brota.

Nas noites silenciosas de Barbalha e Várzea Alegre, penitentes ainda dilaceram as costas com pequenas lâminas, pranteando em benditos o Inocente que morrerá na cruz. A mão direita não sabe o que faz a mão esquerda. O Filho ignora os desígnios do Pai. Todos ocultam a dor e o rosto.

Enlouquecidos, os caretas balançam chocalhos, ritmando passos de dança, no auto de fé profano. As máscaras de couro de bode estampam a escandalosa alegria de quem leva o pai à forca.

Ao som das matracas, sob sudário, vai seguindo o Senhor Morto em procissão, carregado num ataúde.

Sob pedradas e vaias, desce o cortejo de Pai Véi, o boneco de braços abertos, a mão segurando um cigarro no lugar de um ramo verde.

Comprimidos no interior da igreja, os fiéis aguardam a meia-noite do sábado, quando as cortinas roxas desabarão dos trilhos e os sinos tocarão dobrados, abafando o grito de Aleluia.

Dispersos na praça, girando os tirsos de couro, filhos e esposas do Judas esperam o instante em que sua cabeça explodirá, para se atirarem enfurecidos sobre o corpo de trapos e palha.

Jesus e Judas igualados, num mesmo ritual de morte e ressurreição.

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