Não quero ver porque dói | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Homem do homem na sombra

Não quero ver porque dói

O paciente Davi, internado no serviço de adolescentes psiquiátricos num hospital público, usa drogas desde os 8 anos. Maconha, cola, vários tipos de comprimidos, álcool e crack. Davi é o nome fictício de um rapaz de 16 anos, mas a sua existência não tem nada ficcional, é irremediável como o Efeitos do crack.

Apesar da abstenção e dos remédios que o psiquiatra prescreve, Davi mantém o raciocínio, certa consciência de risco e alguns afetos preservados. Encho meu caderno de anotações com os relatos de sua crônica de vida tão diferente da minha. Davi não é um caso comum. Habitualmente, os usuários de crack chegam com deterioração mental tão grave que nem vislumbramos chances de melhora. Alguns não emergem do delírio e ficam numa zona de ruptura, condenados à demência para o resto da vida. Só recentemente Davi começou a delirar. Antes, suas falas impressionavam por uma trágica lucidez, restos de ética e moral e alguns sonhos antigos.

“Como você quebrou esse dente?”

Ele demora a responder.

“Fui num baile com minha boyzinha. Um amigo chegou com o namorado dele, eu estava bêbado e beijei o cara. Meu amigo ficou com ciúme, me empurrou e eu caí.”

“E sua namorada? Você também gosta de rapazes?”

“Saí com uns caras. Eles me davam dinheiro e compravam as coisas pra mim. Deixei. Tava ficando enrolado na cabeça, nem sabia mais se era homem. Agora só quero curtir mulher.”

Outro paciente usuário de crack, Jônatas, também de 16 anos, delira sem melhora, desde o internamento. Expressa seus afetos homoeróticos despindo a roupa, se masturbando na frente das pessoas e tentando manter relações sexuais com os companheiros. Alguns reagem agressivamente, sendo necessária vigilância para evitar violências. É sutil, quase miasmática, essa passagem dos sintomas mentais para as drogas, e o inverso.

Davi me lembra a biografia do diretor francês François Truffaut, preso num reformatório juvenil e salvo graças à intervenção do cineasta André Bazin, que o colocou no caminho do cinema. Cada história é uma história e não tenho nenhuma fantasia de que possa transformar Davi num cineasta. Nem sei como posso ajudá-lo. Apenas percebo os indícios de alguém que pode ser recuperado. Mas a instituição psiquiátrica para adolescentes, no Brasil, cumpre uma função meramente carcerária. Ela não é terapêutica, nem re-socializante.  O serviço social, a terapia ocupacional e a psicologia quase nada fazem. O psiquiatra limita-se a substituir drogas ilícitas por drogas lícitas. O clínico – mea-culpa – limita-se a tratar sintomas clínicos. Fazemos parte de um serviço fragmentado, esquizofrênico como os usuários que buscam ajuda nele.

Os menores com sintomas mentais, mas que também são infratores, ficam sob custódia da polícia, o que reforça o aspecto carcerário do hospital. Jâmisson, de 17 anos, veio de Petrolândia, vendia drogas na sua cidade, assaltou uma agência dos correios e ficou uma semana fechado num motel com várias garotas, consumindo e fazendo baderna. Preso numa unidade de ressocialização, entrou em surto e veio parar na clínica psiquiátrica para adolescentes, ficando junto com os deficitários, psicóticos e drogaditos. A convivência entre usuários e bandidos contribui mais ainda para criminalizar a droga e confunde os papeis dos agentes de saúde com o dos agentes carcerários. Grades, algemas e medicamentos se misturam num perigoso coquetel. O médico busca o espaço terapêutico e descobre que ele foi transformado em prisão.

Distantes dessa realidade, deputados das bancadas da “Bala’ e da “Bíblia”, e outros de siglas diferentes, tentaram aprovar a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Felizmente foram derrotados. Gostaria que esses senhores vivessem num hospital psiquiátrico para adolescentes, ou ficassem internados numa unidade sócio-educativa por algum tempo. Talvez eles compreendessem que a antecipação em 2 anos do encarceramento não irá resolver o problema da violência no Brasil. Ela é real. As unidades sócio-educativas brasileiras já cumprem função carcerária, são presídios disfarçados por siglas.

Sentado no posto de enfermagem, contemplo os pacientes se moverem de um lado para o outro, sem nenhuma ocupação. Choveu, vaza água do teto, falta lençol nas camas e não chegaram mudas de roupa para o banho. Os rapazes caminham sem rumo certo porque essa é a única atividade física possível, naquele espaço. Os mais chapados se deitam e dormem o sono dos neurolépticos. É desesperador. Davi e Jônatas esbarram do outro lado das grades e se olham. Davi arruma com extrema delicadeza as sobrancelhas de Jônatas. Jônatas abraça Davi com ternura.

O desfecho da cena foge ao meu campo de visão.

Nota:

Essa crônica é dedicada ao estudante Edvaldo da Silva Alves, de 21 anos, falecido hoje, dia 11 de abril. Edvaldo foi baleado em 17 de março, quando participava de uma manifestação por maior segurança e paz no município de Itambé, Zona da Mata Norte de Pernambuco.

O crime pesa sobre a consciência de todos os que representam o poder no Estado, civis ou militares.

Clamamos por justiça e por uma política de paz.

Foto: lalesh aldarwish

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