23 ago Eles estão chegando para ficar
O rapaz africano que nos aborda em Florença, fala como se fosse um velho conhecido. Hoje é um dia muito especial para mim, acaba de nascer o meu filho, diz numa mistura de idiomas. De onde vocês vieram? – pergunta ao ver nossas malas. Acabamos de descer de um taxi, viemos da estação de trens e aguardamos na calçada a proprietária do apartamento que alugamos, num prédio do século XVI. Do Brasil, minha esposa responde com simpatia e naturalidade. Brasil, ele grita três vezes, parecendo Galvão Bueno quando a Seleção faz um gol em copa do mundo. E nos cumprimenta com a mão fechada em punho, igualzinho a todos os jovens. Descubro mais tarde que a euforia ao nome Brasil repete-se nos africanos que circulam por ruas, praças e pontes da cidade.
Meu filho dá um passo atrás, mais por incômodo do que por desconfiança, e sinaliza para não alimentarmos a conversa. Bem tarde. A esposa e a nora já negociam a compra de minúsculas esculturas em madeira, que segundo o jovem senegalês trata-se de amuletos. Vão para frente e para trás na conversa, sem entrarem em acordo no valor da mercadoria. O mascate barganha com a sua condição de pai recente, abre uma bolsa e oferece pulseiras e outros artesanatos rústicos. Eu assisto a conversa de longe, me divertindo ao reconhecer a mesma sedução dos ciganos que passavam em nossa cidade, quando eu era criança. Felizmente, a anfitriã chega alvoroçada. Trata-se de uma americana investidora no ramo de alugueis, um modo de sobrevivência cada vez mais comum em cidades turísticas da Europa.
No contrato, foi garantido um primeiro andar com apenas um lance de escada, mas na verdade se trata de um terceiro pavimento. Encaro subir os quatro lances de degraus, carregando as malas. Num impulso de brasileiro habituado a pagar pelo trabalho pesado, olho o jovem negro e sinto desejo de perguntar se não aceita uns euros para carregar as malas junto comigo. Nos três taxis que apanhamos, os motoristas faziam questão de pegar as malas e acomodá-las nos bagageiros dos seus carros. Não aceitavam a menor ajuda, o que não me pareceu ofensivo à condição de taxista. Cobravam a corrida mais cara por conta disso. A proposta ao senegalês seria justa, sofro da coluna, meu filho trata duas hérnias, minha mulher não tem força para tanto peso. Porém, não sinto coragem de propor o biscate. Ajudado pela nora e pela anfitriã encaro o esforço e a subida íngreme.
Dá pena ver as bugigangas vendidas pelos africanos. De tecnológico apenas uma geringonça de metal inventada pelos chineses para distanciar o smartphone e permitir uma selfie abrangente. Centenas de óculos de formatos e cores diversas, pulseiras, brincos e colares rústicos, iguais aos dos hippies. Estes deixavam suas casas e famílias em protesto aos padrões de vida burguesa e ao consumo. Os africanos chegam aos milhares à Itália, amontoados em navios, que vez por outra afundam, transformando o mediterrâneo num cemitério. Partem quase sempre da Líbia e entram por Lampedusa. Deixam suas famílias e culturas por necessidade de sobreviver à guerra, aos massacres, às doenças e a fome. Durante o império romano, eles eram trazidos à Itália, escravizados. Nos séculos de colonialismo europeu na África, sofreram formas disfarçadas de escravidão. Agora, chegam voluntariamente à Europa dos brancos e não são desejados.
Não acompanho a família na visita à Santa Croce. Renuncio aos afrescos de Giotto, ao belo claustro da igreja, aos túmulos de Michelangelo, Galileu e Machiavel. Prefiro ficar do lado de fora, sentado nas escadarias, olhando os chineses barulhentos e agitados, crianças e adolescentes italianos com seus professores para visitas guiadas. A garotada come sanduíches de presunto e queijo, ri e brinca. São generosos em suas manifestações de afeto. Os africanos sorridentes oferecem pulseiras, colares e óculos.
Relações comerciais são estabelecidas, os meninos e as meninas barganham, querem adquirir as bugigangas a qualquer preço, quase todos já exibem óculos espelhados nos rostos e colares de contas coloridas nos pescoços. Brancos e negros se tratam de amigos, cumprimentam-se com as mãos fechadas, até se abraçam, num clima de pândega e cordialidade. As diferenças parecem ser apenas de cor de pele, os jovens africanos riem alto, tratam os garotos pelos nomes, trocam um nome masculino por um feminino, o que causa mais gargalhadas e brincadeiras. Garotas sem dinheiro oferecem os lanches por pulseiras, voltando à era do escambo. Sinto-me contaminado pela sincera alegria entre eles, não percebo nenhuma forma de desprezo ou preconceito, temor ou desconfiança.
Canso-me de esperar a família e decido visitar o antigo gueto judeu e a sinagoga. Ando por ruas com edifícios sem o esplendor de Florença, apartamentos onde se avistam roupas estendidas em varais ou penduradas nas janelas a secar. Trata-se de um bairro sem glamour renascentista ou turístico. A sinagoga é vigiada por policiais armados, preciso deixar todos os meus pertences num armário, incluindo o celular, antes de meter-me numa cabine detectadora de metais. Finalmente chego ao jardim e avisto uma parede com os nomes dos mártires do nazismo.
Paga-se ingresso um pouco mais caro do que na Santa Croce, mas certamente não é por isso que o número de visitantes mostra-se pequeno. Um silêncio incomum à cidade nos deixa reflexivos e solenes. Ponho um quipá e entro no templo. Ele é belo, ao contrário do pequeno museu no andar superior, de acervo modesto. Penso nos mártires do cristianismo, há dois mil anos louvados e lembrados pela Igreja Católica. Leio os nomes dos mártires judeus, de história mais recente. A dor e o sacrifício me parecem comuns, embora do lado judeu não tenha havido escolha. O correto, no caso deles, nem seria dizer martírio, mas extermínio.
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