Pobreza, mediocridade e bocejos | Ronaldo Correia de Brito | site oficial
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Pobreza, mediocridade e bocejos

Eu sou do tempo da folha corrida da polícia. Um documento sem muito significado hoje, mas que nos anos de ditadura era um verdadeiro terror. A Secretaria de Segurança Pública emitia o tal documento. Para se ter acesso à Universidade, ou qualquer outro serviço público, precisávamos comprovar os nossos bons antecedentes políticos e sociais. Sempre experimentei um pânico, quando solicitava a minha folha, numa delegacia. E se eu tivesse cometido algum crime, de que nem me lembrava? Sou sonâmbulo e tenho as minhas pulsões. E também costumava pensar e expor os meus pontos de vista. Quem me garantia a absoluta idoneidade? Naqueles tempos nebulosos éramos sempre culpados, até prova em contrário. De qualquer coisa, por menor que fosse. Como todo católico, que no ato de contrição confessa ter pecado muitas vezes por pensamentos, palavras e obras. A folha corrida era o nosso Auto de Fé.

Um amigo foi preso por equívoco. Também foi espancado por equívoco e penou para conseguir uma folha sem mácula, que lhe desse direito ao ingresso na Universidade. Humilhavam-nos todos os anos, para fornecerem a prova da nossa inocência. Humilhação maior só mesmo o atestado de que éramos pobres na forma da lei. Parece mentira, mas existia esse documento perverso, exigido para se ter acesso a bolsas de estudo e à residência universitária. Aos juizes, bispos e delegados se outorgava o poder de afirmar a nossa penúria. Quem morava na Casa do Estudante, anualmente, tinha de  dobrar-se diante de um meritíssimo, ou beijar o anel de algum bispo para merecer a sua assinatura, numa folha de papel datilografado, com os dizeres: atesto que fulano de tal é pobre na forma da lei.  Por sorte, quase todos os cidadãos brasileiros se tornaram miseráveis fora da lei, e esse atestado foi proscrito. Agora, basta provar que é brasileiro.

A seleção para a Casa do Estudante Universitário não se fazia por critérios intelectuais, por aptidões científicas, filosóficas ou artísticas. Escolhiam-se os não transgressores, sem vocação política e que preferentemente não pensassem. Nas longas entrevistas com uma assistente social bocejante, representávamos o papel de bons rapazes, educados nos princípios cristãos, preocupados com um futuro de sucesso financeiro. Repetíamos um texto decorado, que não feria os princípios do golpe de 64. Deveríamos parecer medíocres e ser pobres na forma da lei.

A história recente do Brasil já rendeu canções de protesto, versos camuflados, torturas, mortes, e ainda provoca revolta ou tiradas de humor bufo. De tão absurda parece mentira. Leon Tolstoi, no livro Guerra e Paz, arrisca-se a falar do caráter de alemães, franceses, italianos, ingleses e dos próprios russos, pelo traço de segurança que cada um expressa. O russo, afirma, está seguro de si mesmo porque não sabe de nada, e de nada quer saber e porque não crê que se possa conhecer perfeitamente o que quer que seja. Um pouco parecido conosco. O talento para a farsa já nos rendeu muitas definições de brasilidade, mas ainda precisamos inventar epítetos e conceitos que melhor definam o caráter nacional.

Para que não se desperdice a larga experiência burocrática acumulada do Império à República, sugiro que se reinstitua a folha corrida da polícia para os candidatos políticos. Que eles provem bons antecedentes, total isenção nos desvios de verbas, tráfico de droga e outras falcatruas. E que ao final de cada mandato, apresentem um atestado de pobreza pela forma da lei, onde não constem as gordas contas bancárias nos paraísos fiscais. E que provem também, que o atestado não foi uma negociata com juizes, bispos e delegados de polícia. Assim, essas jóias da burocracia nacional, que serviram para transformar os oprimidos em doidos, voltarão ao pleno uso.

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