24 jan Cabeça para baixo, pernas para cima
O carnaval quase não mudou nos temas reais e simbólicos que o definem: carne, bebida, sexo e violência. Para os italianos, é da palavra carne que vem o seu nome – carnevale –, significando vale comer carne. Precedendo os dias magros da quaresma, cujos símbolos eram um homem esquelético e um peixe magro, pendurado na ponta de uma vara, o carnaval era a festa do excesso, da opulência, da fartura.
No Brasil de hoje, o vale comer carne se refere mais a outras carnes, cuja degustação não implica necessariamente em canibalismo, apesar do nosso passado antropofágico. Os apelos turísticos são para outros paladares. E a ação do verbo não passa pelos maxilares.
Com o fracasso do Fome Zero, não deixa de ser um risco exibir carnes tão provocantes. Os famintos podem acabar com a festa. Ainda bem que mudamos significados e valores. Expomos o nosso corpo rebolante, no asfalto ou em carros alegóricos, não importa. Interessa ser visto, a qualquer preço. Ocultar-se? Brincar anônimo como faziam os príncipes italianos? Está louco? No nosso carnaval, as máscaras perderam a função.
Mundo de cabeça para baixo, quando a cabeça do mundo era para cima. No carnaval, o rei saía disfarçado no meio do povo e um camponês ostentava uma coroa. Hoje, os políticos fazem questão de mostrar-se em palanques oficiais ou camarotes de luxo. Nas gravuras antigas, os homens aparecem vestindo roupas femininas e as mulheres de calças, botas, chicote na mão, fumando charuto e dando ordens. Os velhos símbolos da inversão sexual foram para os baús e o que era exclusividade do carnaval virou rotina.
Para que servem os três dias de carnaval? Dependendo da cidade do Brasil, podem ser trinta ou sessenta. Controle social? Fuga de um cotidiano miserável? Reunião de classes e culturas, celebrando a alegria e o prazer? A democracia do carnaval, cantada em marchas e sambas, existe mesmo? Curada a embriaguez alcoólica é possível o reencontro dos homens e mulheres que se abraçavam como foliões?
Um cordão de isolamento divide os brincantes, no carnaval de Salvador. Quem paga caro, brinca protegido do povão, atrás do trio elétrico. Mas alguma coisa mudou, é bem verdade. Em Pernambuco, a brincadeira de Cavalo Marinho pedia licença ao senhor de engenho para se apresentar no terreiro da casa grande. Hoje, um mestre rabequeiro toca ciranda num palanque, e os antigos senhores dançam no meio da rua.
Valorizou-se a arte popular com o olho no turismo e no mercado do exótico. A realidade social da maioria dos brincantes mudou bem pouco. Muitos ainda são transportados para os desfiles em carrocerias de caminhão. Do mesmo jeito que se transporta a cana e o gado. Eles cumprem a obrigação e refazem o caminho de volta às casas de taipa, onde vivem.
Os poetas cantam as alegrias e dores do carnaval. E os foliões enchem a cara para transformar a realidade num sonho de três dias. Sem álcool, os olhos enxergam as imagens em preto e branco, as diferenças entre as pessoas que brincam. Descobrem que em algumas cidades estabeleceram espaços nas avenidas, definiram fronteiras. Os cortejos reproduzem uma falsa democracia social, a perigosa convivência entre ricos e pobres.
Flechas, lanças e espadas são todas alegóricas no carnaval. Nenhuma dessas armas ataca de frente a realidade do brincante. Vivemos em clima de guerra civil, separados em campos de batalha, em morros e condomínios fechados, favelas e prédios de luxo, palafitas e Lago Sul. Mas no carnaval, as investidas dos brincantes são pacíficas, os ataques feitos ao passo de dança e as embaixadas poéticas. Tudo um faz de conta.
É pra chorar ou comemorar?
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