07 fev Sozinho eu vou
Meu encontro com o carnaval do Recife foi um susto. Dizem que o escritor Eduardo Galeano quando avistou o mar pela primeira vez segurou a mão do pai e pediu: me ajude a ver! Eu não tinha ninguém por perto que me socorresse. Foi sozinho que vi o caboclo de lança se aproximando de mim, os chocalhos badalando, a gola de vidrilhos brilhando na tarde da rua Manoel Borba, a lança de fitas agitadas. Minhas pernas tremeram e sentei no meio fio da calçada. Busquei na memória uma lembrança parecida, mas não encontrei nada. Então inventei que a aparição misteriosa era um guerreiro descendo os Andes. Nunca mais olhei um maracatu rural sem lembrar o Império Inca.
Eu já escutara no rádio Philips da nossa casa do Crato a Evocação Número 1, de Nelson Ferreira, com os nomes estranhos de Felinto, Pedro Salgado, Guilherme e Fenelon. Uma vizinha de rua, nascida e criada no bairro de Água Fria, marcava o passo de um jeito que nenhum cratense conseguia imitar. Está no sangue, falavam os mais velhos. Não estava no meu sangue dançar o frevo, apenas comover-me com a música alegre e triste que as rádios tocavam e invejar a habilidade dos passistas.
Quando encontrei o carnaval do Recife, muitos anos depois, também o amei como se eu fosse de fato um bom pernambucano. Gostei dele em nuanças, instantâneos, retratos em preto e branco. Prefiro o carnaval minimalista que se revela e oculta como os sonhos, semelhante à música dos blocos que meu pai tentava sintonizar no rádio. As orquestras subiam e desciam nas notas sonoras, deixando o sentimento de que tudo era mais longe e inacessível do que se podia imaginar.
Sou um folião que espreita, vê e recorda. Na rua Nova, passa um bloco cantando. A mulher que sai da loja, com uma filha pequena, abre um sorriso de alegria, pois a música despertou-a e o corpo responde aos chamados. Ela não se contém e dança, esquecida de qualquer gravidade ou pudor. Não resiste, sai arrastada, puxando a filha pela mão. Mais adiante para, arruma o cabelo, recompõe a roupa, imagino que se desculpa. Depois, apanha o ônibus para algum subúrbio longe, onde mora numa casa humilde.
E os dois trompetistas, que fugiram da orquestra de frevo e olham a passagem do maracatu? São tipos viris, de peitos largos, com muito fôlego. O batuque mais parece o de um terreiro de umbanda. Não sou apenas eu que penso assim. Os dois músicos, sem largarem os instrumentos de metal, fingem que incorporaram orixás. Dançam, rebolam, se agitam em tremores de atuados. Por que não recebem Xangô ou Ogum, divindades masculinas? Não sei, preferem imitar os gestos de uma Iansã ou Oxum. O batuque se afasta e eles voltam à formação da orquestra, esquecidos das mulheres que há bem pouco foram. Só eu permaneço embriagado, querendo compreender o que vi. Me aproximo, faço perguntas, anoto, tento estabelecer um vínculo. Os rapazes me ignoram, pois não sabem o que senti. Bem próprio ao carnaval, a magia se desfaz e nunca mais será repetida.
Caboclinhos relaxam depois da apresentação. Aguardam o ônibus que irá levá-los de volta à cidade de Goiana. Os cocares encostados numa parede, as preacas recolhidas e amarradas, saiotes e pulseiras pelos cantos. O gaiteiro não tem nada o que fazer, puxa um baião. O tocador de caixa e o de maracá acompanham. Dois rapazes largam as namoradas e se atracam. Dançam agarrados, acariciando os corpos com sensualidade. As pessoas riem, empurram os trelosos. Ligeira como começou, a brincadeira se desfaz. Dura o tempo de uma fotografia amorosa, um registro da farra que ocorre à margem do carnaval oficial, movida por muito álcool é bem verdade, mas, sobretudo, pela pulsão de alegria.
Visto através de ruas e becos, recantos de praças e avenidas, o carnaval revela o Recife e sua gente. Aprecio os enquadramentos fechados, os pequenos planos, as melodias perdidas, os cheiros que entram pelo nariz sem pedir licença, o suor do passista que nos salpica. Gosto do carnaval que nasce espontâneo, por pura vontade de brincar, e do folião que se fantasia, invertendo a ordem do mundo. O carnaval aglomera, vira onda e furacão, mas também é solitário, vontade de um único brincante.
Inventaram números para medir o novo carnaval: dois milhões na orla de Salvador, um milhão e meio no Galo do Recife, um milhão na rua Augusta em São Paulo, tantos milhões não sei onde. Quantificação boba. A esses interessa que as pessoas se aglutinem numa euforia compulsiva da qual não podem fugir. É a lei do consumo. Números apenas. Poucos sentem coragem de ser apenas um numerozinho, fora desses milhões. Os rebelados andam pelas ruas, solitários, não cantam nem dançam o que ordenam.
De vez em quando, gosto de surpreendê-los, assim por acaso, pois apenas eles me revelam o carnaval que sempre amei.
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