Quem viu Amarcord, de Fellini? Eu assisti mais de dez vezes. N\u00e3o h\u00e1 uma \u00fanica cena do filme que eu n\u00e3o aprecie. Gosto da m\u00fasica de Nino Rota, de Gradisca, Volpina, do maluco tio Teo, do pav\u00e3o do Conde, da cena final com o casamento e um acordeom tocando nost\u00e1lgico… Amo Fellini e queria ter assinado a dire\u00e7\u00e3o de todos os filmes que ele realizou. Todos, n\u00e3o. Julieta dos Esp\u00edritos \u00e9 muito chato.<\/span><\/p>\n

Agradam-me os artistas com p\u00e1tria, paisagem na mem\u00f3ria, uma pequena cidade que sempre aparece nas suas cria\u00e7\u00f5es. Mesmo quando as personagens desfilam por Paris ou Nova York, parece que caminham pelo lugar ancestral que o artista carrega dentro de si. Garcia Marquez tem Aracataca; Kazantz\u00e1kis, Creta; Kav\u00e1fis, Alexandria; Lorca, Granada; Fellini tem Rimini.<\/span><\/p>\n

Rimini \u00e9 o centro do mundo. Nada deixou de acontecer ali. Em Amarcord, os celtas s\u00e3o lembrados na queima da bruxa, no in\u00edcio da primavera; os romanos na grandiloqu\u00eancia; e os americanos numa fe\u00e9rica elabora\u00e7\u00e3o do superficial e do falso. As duas cenas no Grande Hotel, a chegada do Xeique e o encontro de Gradisca com o Pr\u00edncipe, s\u00e3o par\u00f3dias hilariantes dos musicais de Hollywood. Acho que \u00e9 por essas sacadas que eu gosto tanto de Fellini. Ele descobriu uma f\u00f3rmula de tratar pol\u00edtica, religi\u00e3o e a mais funda ang\u00fastia existencial com humor e poesia. A maneira como ele exp\u00f5e o histrionismo de Mussolini e o rid\u00edculo do poder, em Amarcord, me parece mais sincera que Spielberg falando do povo judeu no filme A Lista de Schindler. Fellini deixou que seus olhos de crian\u00e7a dirigissem a c\u00e2mera que mostra a It\u00e1lia fascista, onde os absurdos e os crimes se revelam entre peidos e risos.<\/span><\/p>\n

Com o olhar assombrado de um menino de 12 anos, vi cenas da hist\u00f3ria recente do pa\u00eds. Num primeiro de abril de 1964, dia consagrado \u00e0 mentira, papai me proibiu de ir \u00e0 escola, na cidade cearense do Crato. Minha m\u00e3e, aflita, acendia velas para Nossa Senhora Aparecida, uma imagem de lou\u00e7a que o irm\u00e3o mais velho e eu ganhamos de presente na primeira comunh\u00e3o. <\/span><\/p>\n

O perigo do comunismo ateu est\u00e1 erradicado, mam\u00e3e repetia ing\u00eanua, sem saber o que dizia, doutrinada como todos os cat\u00f3licos da \u00e9poca, pela Igreja e a propaganda americana da Guerra Fria. As mesmas mentiras criadas e plantadas nos dias de hoje, 54 anos depois, atrav\u00e9s dos fake news, para enganar sobretudo os evang\u00e9licos e a popula\u00e7\u00e3o humilde, e que tamb\u00e9m alcan\u00e7ou os \u201cesclarecidos\u201d, ou que se julgam assim. Naquela \u00e9poca, ainda existia Uni\u00e3o Sovi\u00e9tica e Mao Tse-tung na China. Mas e agora, por que essa paranoia de comunismo e socialismo, Venezuela e Cuba? <\/span><\/p>\n

Meu pai anunciou solene que os militares haviam feito uma revolu\u00e7\u00e3o. Deram um golpe, rebateu o irm\u00e3o da nossa m\u00e3e, que morava conosco em casa. As crian\u00e7as s\u00f3 viam proveito no acontecimento. Tinham o dia livre para brincadeiras e banhos de rio. O vizinho da rua Te\u00f3filo Siqueira, Seu Z\u00e9 Correia, fechou as portas de casa, enlutado. Janista fan\u00e1tico, havia queimado uma bateria de fogos, do come\u00e7o ao fim da rua, quando J\u00e2nio Quadros e sua vassoura ganharam as elei\u00e7\u00f5es para presidente. Era uma quinta-feira, dia em que o gado subia para o matadouro da cidade. Assombrados com o tiroteio, sem saber para onde correr, bois e vacas entraram no pal\u00e1cio do bispo. <\/span><\/p>\n

Prenderam Ded\u00e9 Alencar, dono do armaz\u00e9m de farinha, porque tocou na radiola um disco com a m\u00fasica da campanha de Miguel Arrais. Prenderam Juv\u00eancio Mariano, que ningu\u00e9m sabia que era comunista. Todos o conheciam como o dono da sapataria. Minha m\u00e3e ficou preocupada porque ele nos vendia a presta\u00e7\u00e3o. Levaram um banc\u00e1rio da nossa rua. Assistimos a cena sem compreender nada. Era um vizinho legal, tinha um Jeep e dava bigu quando volt\u00e1vamos da escola. A mulher dele olhava para n\u00f3s, perguntando em tom de desafio: nunca viram um homem honesto sendo preso? <\/span><\/p>\n

Na igreja tocavam os sinos e o bispo celebrou missa de a\u00e7\u00e3o de gra\u00e7as pelo golpe. Meu pai era udenista e confiava nos militares. N\u00f3s ainda n\u00e3o compreend\u00edamos o que fosse capitalismo e comunismo. O Crato era distante como Rimini e as not\u00edcias nos chegavam tarde, nos jornais das Atualidades Atl\u00e2ntida, que antecediam aos filmes. Os desejos pueris dos meninos se enganavam nos seriados do cinema, falsos como as trinta concubinas do Xeique de Amarcord.\u00a0 \u00a0<\/span><\/span><\/p>\n

Essas lembran\u00e7as me ocorreram no dia em que assisti ao primeiro discurso do novo presidente. \u00c0 pantomima do eleito e seus assessores orando de m\u00e3os dadas e olhos fechados. Seria hil\u00e1rio como um quadro de humor, se n\u00e3o apontasse para a gravidade do que nos espera. N\u00e3o estava \u00e0 altura da fant\u00e1stica cena de Roma de Fellini, onde rugosas matriarcas, ao lado de cardeais decr\u00e9pitos, lamentam a perda do prest\u00edgio da nobreza e do clero. O que se via sem deforma\u00e7\u00e3o de lentes era a imagem nua e crua do futuro sombrio da nossa democracia.<\/span><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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