(em mem\u00f3ria aos 50 anos do assassinato do Padre Henrique)<\/span><\/h4>\n

\n\u00c0s duas da madrugada ningu\u00e9m conseguia determinar a intensidade e dire\u00e7\u00e3o de um vetor de for\u00e7a, apagara da mem\u00f3ria as equa\u00e7\u00f5es lineares de movimento e sentia-se incapaz de dizer o valor do n\u00famero PI. Estud\u00e1vamos desde as vinte horas, no apartamento quente e sufocante de um colega de Teresina, na rua Bar\u00e3o de S\u00e3o Borja. <\/span><\/p>\n

Em torno, velhos casar\u00f5es ainda se mantinham de p\u00e9, alguns com a azulejaria exibindo sinais de vandalismo, saques para venda em antiqu\u00e1rios inescrupulosos. Rua Velha, da Gl\u00f3ria, do Progresso, das Ninfas, da Soledade, do Paissandu… A Boa Vista ocupada por moradores que n\u00e3o os de rua, no momento exato de receber um projeto de reforma urban\u00edstica e de habita\u00e7\u00e3o, como o das cidades europeias, antes que viesse a sofrer a degrada\u00e7\u00e3o de hoje.<\/span><\/p>\n

1969, um ano depois do Ato Institucional N\u00famero 5. Ano em que assassinaram o padre Henrique e balearam o estudante de engenharia C\u00e2ndido Pinto. Alheios a esses conflitos pol\u00edticos, os dois garotos cearenses e um piauiense, aspirantes ao curso de medicina, sa\u00edam para o Recife adormecido, ansiosos pela brisa marinha, que soprava na rua da Aurora. <\/span><\/p>\n

Os perigos? Viviam obcecados pelo vestibular, a primeira lei de Newton garantia que t<\/span>odo corpo mantinha o estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta, a menos que fossem aplicadas for\u00e7as contr\u00e1rias sobre ele. A trucul\u00eancia da ditadura militar gerava essa oposi\u00e7\u00e3o. Mas os tr\u00eas rapazes provincianos se moviam no sentido \u00fanico de alcan\u00e7ar uma vaga, de prefer\u00eancia n<\/span>a Universidade Federal de Pernambuco. <\/span><\/p>\n

A cidade do Recife, deslumbrante aos olhos de quem nunca avistara rio, pontes, igrejas barrocas e palacetes era uma tenta\u00e7\u00e3o. Descendo pela Conde da Boa Vista, caminhando e cantando sem qualquer lembran\u00e7a de Geraldo Vandr\u00e9, escutando vozes e passos ecoando entre os edif\u00edcios, chegavam \u00e0 esquina do Cinema S\u00e3o Luiz, onde pescadores arriscavam a sorte com anz\u00f3is e redes. Os hippies da contracultura mangue s\u00f3 dariam o ar da gra\u00e7a l\u00e1 pelo final de tarde, \u00e1vidos de aten\u00e7\u00e3o e esc\u00e2ndalo. Conhecidos e emblem\u00e1ticos, repetiam-se em se\u00e7\u00f5es do cinema de arte Coliseu, no Alto da S\u00e9 de Olinda, em shows no Teatro do Parque, nos vernissages de artistas pl\u00e1sticos. <\/span><\/p>\n

A margem do Capibaribe, no Cais da Aurora \u2013 a San Francisco pernambucana \u2013 nunca mais foi a mesma sem a fauna embalada pelo toque desafinado de viol\u00f5es e o cheiro transgressor da maconha. Recife rom\u00e2ntico dos crep\u00fasculos das pontes, dos crep\u00fasculos que assistiram \u00e0 passagem dos fidalgos holandeses, que assistem agora aos movimentos das ruas tumultuosas, que assistir\u00e3o mais tarde \u00e0 passagem dos avi\u00f5es para as costas do Pac\u00edfico, Recife rom\u00e2ntico dos crep\u00fasculos das pontes e da beleza cat\u00f3lica do rio<\/i>. Eu diria beleza ca\u00f3tica, corrigindo os versos de Joaquim Cardozo.<\/span><\/p>\n

O primeiro el\u00e9trico para Casa Amarela, somente \u00e0s cinco da manh\u00e3, com a cidade despertando. Depois de conversar besteiras com os pescadores e de recusar a cacha\u00e7a bebida em latas, os dois garotos seguiam para a Av. Guararapes, outro orgulho da metr\u00f3pole, onde deitavam em bancos de cimento ou nas muretas que ladeavam o rio, esperando o sol e o el\u00e9trico. <\/span><\/p>\n

Hostil e acolhedor, o Recife recebia levas de imigrantes, a cada estiagem prolongada. Gente do Nordeste pobre. Sempre havia o consolo das \u00e1guas polu\u00eddas do Capibaribe, uma palafita sobre a lama dos manguezais e caranguejos para chupar as patas. Na secura sertaneja, coisa nenhuma. Pelo Recife ficavam, uns procurando estudo, outros desejando emprego ou biscate, na conviv\u00eancia da cidade masculina, paterna, dura e reta, apesar das curvas sinuosas do rio e do tra\u00e7ado das pontes. <\/span><\/p>\n

Exilando-se de bairros tradicionais como Santo Ant\u00f4nio, S\u00e3o Jos\u00e9, Boa Vista e Ilha do Leite para os aglomerados urbanos das praias, o Recife sofreu migra\u00e7\u00f5es internas que o tornaram pobre e decadente. Seus novos poetas, cineastas e m\u00fasicos buscam o lirismo no caos. E ainda encontram onde sugar poesia, como a inesgot\u00e1vel carne dos caranguejos.<\/span><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

(em mem\u00f3ria aos 50 anos do assassinato do Padre Henrique) \u00c0s duas da madrugada ningu\u00e9m conseguia determinar a intensidade e dire\u00e7\u00e3o de um vetor de for\u00e7a, apagara da mem\u00f3ria as equa\u00e7\u00f5es lineares de movimento e sentia-se incapaz de dizer o valor do n\u00famero PI. Estud\u00e1vamos…<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":1144,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"content-type":"","footnotes":""},"categories":[8,46,45],"tags":[182,139,181],"class_list":["post-1143","post","type-post","status-publish","format-standard","has-post-thumbnail","hentry","category-blog","category-links","category-slider","tag-ai-5","tag-ditadura","tag-padre-henrique"],"yoast_head":"\n