Quando escrevi o romance Estive l\u00e1 fora<\/i>, n\u00e3o achei f\u00e1cil recompor um tempo distante de mim mais de quarenta anos. O per\u00edodo de Faculdade de Medicina e Hospital Pedro II, no Recife, foram marcados pela repress\u00e3o e pelo clima sombrio da ditadura militar. Eu acalentava o projeto de escrever o romance h\u00e1 bastante tempo, por\u00e9m n\u00e3o conseguia recompor a atmosfera pesada que vivi. Os relatos da \u00e9poca, as entrevistas com amigos militantes me pareciam amenizadas, com certa dose de humor, que destoava do sofrimento presenciado. As pessoas pareciam esquecidas daquele per\u00edodo ou desejosas de esquec\u00ea-lo. Para alcan\u00e7ar a atmosfera que buscava, tive de ler autores europeus que viveram entre as duas Grande Guerras. <\/span><\/p>\n

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Eu desejava contar as hist\u00f3rias que me impressionaram e se tornaram minhas. Uma delas, era o atentado ao jovem estudante de engenharia, C\u00e2ndido Pinto. Quando vi uma foto de C\u00e2ndido, na casa de seu irm\u00e3o, tive o primeiro impulso para escrever. Sa\u00ed juntando hist\u00f3rias reais e reinventando-as. O meu processo narrativo consiste em inventar a mem\u00f3ria.\u00a0<\/span><\/p>\n

O fato do personagem principal do romance, Cirilo, ser um jovem estudante de medicina, \u00e0 procura do irm\u00e3o Geraldo, desaparecido na milit\u00e2ncia de esquerda, termina se misturando \u00e0s minhas lembran\u00e7as. Por mais objetivo que seja um autor, por mais distanciado do que narra, seus personagens se impregnam de sua pr\u00f3pria biografia. Sem minhas viv\u00eancias e mem\u00f3rias ele n\u00e3o seria t\u00e3o real, t\u00e3o vivo e apaixonante.<\/span><\/p>\n

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O mais grave do processo foi quando comecei a sonhar os sonhos de Cirilo. Me levantava da cama angustiado, anotava o que havia sonhado e incorporava ao romance. Estive l\u00e1 fora<\/i> conta a hist\u00f3ria de algumas fam\u00edlias destru\u00eddas pela repress\u00e3o. Eu precisei localizar fotos, olhava para elas e descrevia. Dessa maneira, consegui montar n\u00facleos familiares e enredos. O personagem S\u00edlvio, amigo de Cirilo, estava atrofiado, n\u00e3o se desenvolvia na trama. At\u00e9 que encontrei uma foto de uma fam\u00edlia formada por um pai, tr\u00eas filhos rapazes, uma mocinha e um menino, em torno da m\u00e3e morta dentro de um caix\u00e3o. O menino tornou-se S\u00edlvio e a partir dessa imagem ele ganhou consist\u00eancia.<\/span><\/p>\n

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Acho que transito melhor pelo conto do que pelo romance. Tenho a fantasia de que os contistas s\u00e3o franzinos, esguios, silenciosos e secos. Habituei-me a esse perfil de contista. Por\u00e9m o conto, pela sua exatid\u00e3o e poucas p\u00e1ginas, n\u00e3o comporta as ideias, os ensaios que eu desejava trabalhar. No romance cabe tudo. Passei a escrever romances pela necessidade de expandir-me, de alargar-me nos meus pontos de vista, defender o que penso e gosto, apropriar-me de bens de cultura. Jorge Luis Borges alcan\u00e7a isso nos contos. Mas ele \u00e9 um g\u00eanio, inventou um m\u00e9todo \u00fanico de escrita, que n\u00e3o vale a pena seguir.\u00a0 <\/span>Sem aumentar o peso corporal, passei para o romance. O cr\u00edtico Manuel da Costa Pinto escreveu que Estive l\u00e1 fora<\/i> \u00e9 um romance de ideias. Galileia<\/i> tamb\u00e9m. E de pequenos ensaios. Fui massacrado por colocar uma nota no final, referindo as fontes citadas. Eu n\u00e3o queria subestimar a intelig\u00eancia dos leitores, desejava apenas referir aquilo de que me apropriei, para n\u00e3o ser acusado de pl\u00e1gio.<\/span><\/p>\n

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Tornei-me escritor \u00e0 revelia, pois sempre fui encaminhado \u00e0 medicina, como uma profiss\u00e3o mais vi\u00e1vel para servir aos meus semelhantes. A literatura sempre foi um v\u00edcio, um h\u00e1bito de vida que se agravou, tomou conta de mim nos \u00faltimos anos. Tento administrar o tempo e a ansiedade. N\u00e3o \u00e9 f\u00e1cil, tapeio. Mas, o tempo \u00e9 inven\u00e7\u00e3o do homem.<\/span><\/p>\n

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Creio que sempre irei contar hist\u00f3rias de irm\u00e3os. Sofri um trauma antes de nascer: a perda de dois irm\u00e3os. Isso marcou minha vida de forma dram\u00e1tica. Vivo procurando por eles, mesmo na literatura.<\/span><\/p>\n

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Morei apenas cinco anos e doze dias na fazenda Lajedos, no Saboeiro, sert\u00e3o dos Inhamuns, onde nasci. Foi bastante. Era um mundo m\u00edtico, cheio de hist\u00f3rias e assombros. Hermann Broch enxerga como salva\u00e7\u00e3o para o homem p\u00f3s-moderno que ele n\u00e3o perca a perspectiva do mito. Nunca perco a perspectiva do sert\u00e3o. Os ingleses chamavam a regi\u00e3o de \u201cterras de tr\u00e1s\u201d. O sert\u00e3o \u00e9 a minha terra de tr\u00e1s. Estar\u00e1 presente aonde eu for. \u00c9 o que enxergo quando subo o pr\u00e9dio mais alto da cidade de S\u00e3o Paulo e olho as planuras concretas.<\/span><\/p>\n

Comecei a publicar seriamente h\u00e1 poucos anos. Andei ligeiro, desde ent\u00e3o. N\u00e3o gosto de me cansar e mantenho as atividades simples como parte do meu projeto de vida. Adoro arrumar casa, arm\u00e1rios, fazer arranjos de flores, ir \u00e0 feira, caminhar, ficar com a fam\u00edlia. Para mim, todas essas coisas possuem a mesma ordem de grandeza da literatura.\u00a0<\/span><\/p>\n

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