\u201cNeste recorte editado do romance Dora sem v\u00e9u<\/i>, trato de um dos meus temas obsessivos: o desprest\u00edgio da arte produzida fora da Europa Central e Estados Unidos. O personagem Garcilaso, professor bem humorado e c\u00e1ustico, questiona a \u2018desqualifica\u00e7\u00e3o\u2019 regionalista, da mesma maneira que Edward Said questiona a inven\u00e7\u00e3o de orientalismo.\u201d<\/span><\/p>\n

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Depoimento do professor Garcilaso
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Vivi sempre no Crato. O cariri cearense \u00e9 o centro do mundo, Juazeiro a matriz da religiosidade e da cultura popular. Aqui existia um oceano cret\u00e1ceo e se guardaram f\u00f3sseis muito antigos. Portanto, somos velhos, todo esse passado sobrevive em n\u00f3s, faz parte de nossa gen\u00e9tica. As pessoas do Recife acreditam que o oceano Atl\u00e2ntico se formou pela uni\u00e3o do rio Capibaribe com o Beberibe. Eu afirmo que o mundo come\u00e7ou aqui. <\/span><\/p>\n

Minha segunda casa era um rio, mas n\u00e3o era igual ao Sena, o Dan\u00fabio, o Reno, o Mississipi ou o Volga. Cansamos de nos apresentarem esses cursos de \u00e1gua, nos romances e novelas. Eles nem precisam ser descritos, fomos massacrados com tantas informa\u00e7\u00f5es que parecemos imbecis se desconhecemos a geografia fluvial da Europa ou dos Estados Unidos. <\/span><\/p>\n

A nenhum franc\u00eas se pede que conhe\u00e7a o Granjeiro, o riozinho do Crato. Ele des\u00e1gua no Salgado, o Salgado no Jaguaribe e o Jaguaribe no Atl\u00e2ntico. At\u00e9 nas aulas de hist\u00f3ria nos obrigavam a discorrer sobre o Sena, a mencionar os nobres afogados em suas \u00e1guas, durante a Revolu\u00e7\u00e3o Francesa. Essas coisas inquietavam o meu ju\u00edzo e comecei a assumir um comportamento rebelde nas disciplinas curriculares. <\/span><\/p>\n

Outra descoberta dizia respeito \u00e0 flora estrangeira. Cansei de ler sobre carvalhos, choupos, salgueiros, sequoias, pinheiros, zimbros, faias, aveleiras, t\u00edlias, pl\u00e1tanos, freixos, nogueiras e amieiros. Fazia um esfor\u00e7o sobre-humano para elaborar as imagens, nem sempre havia enciclop\u00e9dias e revistas de consulta e quando as \u00e1rvores apareciam nos filmes n\u00e3o havia uma seta indicando: isso \u00e9 um carvalho. <\/span><\/p>\n

Nas reda\u00e7\u00f5es do col\u00e9gio eu me sentia inseguro em escrever sobre a flora europeia, que tanto impressionava os professores habituados \u00e0s leituras de Tolst\u00f3i, Balzac e Maupassant, alheios \u00e0s nossas esp\u00e9cies nativas, oitizeiros, bara\u00fanas, angicos, muricis, aroeiras, quixabeiras, carna\u00fabas, juazeiros e gameleiras. Um dia perguntei ao professor de literatura por que era obrigado a conhecer um abeto, e se exigiam de um estudante alem\u00e3o que memorizasse os nomes da vegeta\u00e7\u00e3o mirrada da caatinga. <\/span><\/p>\n

O mestre tinha a resposta pronta. Nossa literatura era regionalista, nossos escritores n\u00e3o preenchiam os c\u00e2nones universais e por isso \u00e9ramos t\u00e3o pouco lidos dentro e fora do pa\u00eds. Citou a entrevista de um escritor peruano, que ganhou o Nobel, onde ele afirmava: \u201cN\u00e3o seria o escritor que sou, sem os anos que vivi na Europa. Felizmente, a vida me premiou, convertendo-me num cidad\u00e3o do mundo\u201d. Conclu\u00ed que foi gra\u00e7as a ter morado na Europa que se tornou um escritor e cidad\u00e3o do mundo. Mas, n\u00e3o afirmava se os nascidos fora da Europa deixariam de ser cidad\u00e3os do mundo, apenas tornava claro que, para ele, um peruano, a cidadania e o livre tr\u00e2nsito pelo mundo se deram porque residia na Europa. <\/span><\/p>\n

A afirmativa deixou transparecer as dificuldades dos intelectuais da Am\u00e9rica Latina em rela\u00e7\u00e3o aos seus pa\u00edses de origem e suas culturas. N\u00e3o fiquei satisfeito com a resposta do professor e continuei desejando saber o motivo dos marmeleiros, mandacarus e carna\u00fabas serem regionais e os carvalhos universais. <\/span><\/p>\n

Enchendo a boca e a papada, nosso arcaico mestre leu um trecho do O Romeiral<\/i>, de Balzac: \u201cH\u00e1 uvas de todas as regi\u00f5es, figos, p\u00eassegos, peras de todas as esp\u00e9cies e mel\u00f5es, assim como o alca\u00e7uz, a giesta de Espanha, os eloendros da It\u00e1lia e os jasmins dos A\u00e7ores\u201d. Revirava os olhos, degustando frutas que nunca tivera o prazer de saborear, acostumado apenas aos cajus, mangas e bananas. E nos obrigava a descobrir no dicion\u00e1rio o que era alca\u00e7uz, giesta e eloendro. <\/span><\/p>\n

Um colega me doutrinava afirmando que todo o poder balzaquiano era consequ\u00eancia da economia e cultura dominantes. Se n\u00f3s f\u00f4ssemos poderosos e export\u00e1ssemos literatura ao inv\u00e9s de a\u00e7\u00facar e caf\u00e9, os gringos estudariam em suas escolas o que era um mandacaru. E que minhas preocupa\u00e7\u00f5es caducavam de velhas, o escritor Jos\u00e9 de Alencar j\u00e1 se ocupara em defender pontos de vista semelhantes, os modernistas de S\u00e3o Paulo e os regionalistas do Recife levantaram as mesmas quest\u00f5es, apenas na nossa cidade continu\u00e1vamos ignorando o que se escrevia no Brasil e lendo autores europeus cl\u00e1ssicos. <\/span><\/p>\n

Advertiu que eu n\u00e3o alcan\u00e7aria mudan\u00e7as pensando e escrevendo, s\u00f3 atrav\u00e9s da revolu\u00e7\u00e3o prolet\u00e1ria o mandacaru ganharia status de carvalho, virando um s\u00edmbolo da resist\u00eancia nordestina. As ideias me pareceram malucas, continuei dando cabe\u00e7adas para todos os lados, subi o rio Granjeiro at\u00e9 chegar \u00e0 Floresta do Araripe, onde tive a revela\u00e7\u00e3o da natureza e do sagrado. <\/span><\/p>\n

(trecho editado do romance Dora sem v\u00e9u<\/i>)<\/span><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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