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{"id":1809,"date":"2021-09-18T13:07:21","date_gmt":"2021-09-18T16:07:21","guid":{"rendered":"https:\/\/www.ronaldocorreiadebrito.com.br\/site2\/?p=1809"},"modified":"2021-09-18T13:07:21","modified_gmt":"2021-09-18T16:07:21","slug":"o-que-fala-sombra-o-que-cala-luz-2","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.ronaldocorreiadebrito.com.br\/site2\/2021\/09\/o-que-fala-sombra-o-que-cala-luz-2\/","title":{"rendered":"O que fala a sombra, o que cala a luz"},"content":{"rendered":"

Naquela idade eu n\u00e3o conseguia imaginar os milhares de p\u00e9s descal\u00e7os e os sapatos escuros sob luzes plainando como um c\u00e9u baixo. As velas acesas ocupam a pra\u00e7a, brilham mais do que os globos opalescentes dos postes. Os fi\u00e9is se protegem da parafina quente, escorrendo e queimando suas m\u00e3os, improvisam cones de cartolina, que tamb\u00e9m se incendeiam. \u201cAve, ave, ave Maria, ave, ave, ave Maria. Viva Nossa Senhora de F\u00e1tima Peregrina!\u201d Colados \u00e0s grades da cadeia, os presos olham a imagem min\u00fascula no andor, as flores dos belos jardins, onde eles nem sonham pisar. \u201cOs tr\u00eas pastorzinhos cercados de luz recebem a visita da m\u00e3e de Jesus.\u201d O pai, estatura mediana, se esfor\u00e7a para que o filho assista ao espet\u00e1culo luminoso de cima dos seus ombros, escanchado como num cavalo. O menino n\u00e3o curte montarias, prefere a firmeza do ch\u00e3o ou a cabine de um carro em velocidade. Enfia os dedos e se sust\u00e9m na cabeleira, uma crina escura e lisa, certeza de origem branca da fam\u00edlia. Ou ind\u00edgena? A m\u00e3e, pequena e bondosa, se alonga nas pontas dos p\u00e9s, mas n\u00e3o enxerga al\u00e9m das esp\u00e1duas \u00e0 sua frente, homens e mulheres de branco, fitas azuis atravessadas no peito.\u00a0 <\/span>Ao contr\u00e1rio do marido possui f\u00e9, se comove com os louvores e vivas, as exorta\u00e7\u00f5es \u00e0 piedade e \u00e0 vida eterna. \u201cUm susto tiveram ao verem a luz, recebem a visita da M\u00e3e de Jesus.\u201d O pai mostra o circo da pra\u00e7a. Olhe, filho! A igreja e o contorno sobrenatural de l\u00e2mpadas; as casas dos propriet\u00e1rios de engenho, usadas nos finais de semana para as missas, novenas e festas; o lago cheio de patos, gansos e marrecos; os arcos romanos; os oitizeiros, jatob\u00e1s e ip\u00eas; a cadeia infame, de onde os presos vigiam as pessoas que entram e saem da matriz. \u201cVivamos sem mancha, crist\u00e3os sem lab\u00e9u, que a Virgem nos guie a todos pro c\u00e9u.\u201d E numa casa um pouco al\u00e9m e \u00e0 esquerda da Casa de Deus, sem luzes, apagada no escuro, as paredes infestadas de cupim, presa por leis arquitet\u00f4nicas \u00e0 branca alvenaria da matriz, portas e janelas batidas com pregos, a mem\u00f3ria dos morf\u00e9ticos e seus pecados. Que s\u00f3rdida proximidade entre a casa sombria e a luminosa igreja, como se fosse poss\u00edvel celebrar na mesma pedra d\u2019ara a lux\u00faria e a santidade, a concep\u00e7\u00e3o virginal e o incesto. Um homem portador da lepra trouxera para a cama de molambos sujos a amante e suas duas filhas, e concebera uma estranha gera\u00e7\u00e3o. \u201c\u00d3 Virgem Senhora, M\u00e3e da Piedade, livrai-nos das penas da eternidade.\u201d \u00c0s claras, para que toda a cidade conhecesse suas fornica\u00e7\u00f5es no escuro e as amaldi\u00e7oasse, desejando. N\u00e3o pise a cal\u00e7ada da casa, impunha a m\u00e3e. Adentre o pecado, ordenava o pai, os dedos do filho mal segurando a crina oleosa. Grandes e chatos os p\u00e9s paternos, finos e delicados os maternos. Eles pisam o solo cret\u00e1ceo da cidade, o que antes fora um oceano h\u00e1 milh\u00f5es de anos, vez por outra revelado em f\u00f3sseis que as pessoas arrancam: avencas, peixes, insetos. O que est\u00e1 sob a terra \u00e9 nada, garante a m\u00e3e. Encarar a luz \u00e9 para os mortais a coisa mais apraz\u00edvel. N\u00e3o tema o escuro, rebate o pai. Na sombra se escondem os mist\u00e9rios. Contemple as luzes acima das cabe\u00e7as e sonhe escavar embaixo dos p\u00e9s. Durante s\u00e9culos, as \u00e1guas do oceano se tornaram nuvens e camadas de argila se depositaram sobre os seres animais e vegetais. Os poderosos amaram as esposas e as criadas de suas terras, resguardados pelo sil\u00eancio. Palavras se depositaram em frases e hist\u00f3rias familiares, como a argila dos f\u00f3sseis, gerando enredos de \u00f3dio, vingan\u00e7a, inveja, incesto, trai\u00e7\u00e3o e morte: Noite, Bilhar, For\u00e7a, Magarefe, Mellah, Atl\u00e2ntico, Helic\u00f3pteros, Perfei\u00e7\u00e3o, Sombras, V\u00e9u, Amor, Lua. A mesma novela recontada de doze maneiras, mil e uma noites. Um dia, a mo\u00e7a tomou o menino pela m\u00e3o e levou-o por uma ladeira. Subiram, subiram at\u00e9 imaginarem que chegavam ao c\u00e9u. Viram as luzes, meninas cantando, vestidos azul claro e rosa, anjos, ciganas, beija-flores, borboletas, pastorinhas, caboclinhos, o c\u00e9u da inf\u00e2ncia. Um dia, a mo\u00e7a levou o menino ao por\u00e3o da cadeia e mostrou-lhe um homem que se enforcara com um arame enferrujado. Roxo, a l\u00edngua de fora, dobrara os joelhos na cela min\u00fascula e baixa e s\u00f3 dessa maneira alcan\u00e7ara a fa\u00e7anha. O menino ficou muitas noites sem dormir, impressionado com a cena, sem atinar com algum uso futuro para essa mem\u00f3ria. \u201cNem um dia se passa, nem um minuto ou segundo sem um morto. O passado \u00e9 o que empurra voc\u00ea e eu e todos da mesm\u00edssima maneira, e a noite pertence a voc\u00ea e a mim e a todo mundo, e o que ainda n\u00e3o foi tentado e o que vem depois \u00e9 pra voc\u00ea pra mim e pra todo mundo\u201d, recitava insistentemente o pai. Escreva, revele o seu amor \u00e0s sombras. Um dia, quando o menino era grande, e a barba se tornara escassa e grisalha, e as v\u00e9rtebras lombares teimavam em n\u00e3o se dobrar, a m\u00e3e, pequena e bondosa perdeu a fala, depois os movimentos, a degluti\u00e7\u00e3o, e s\u00f3 respirava atrav\u00e9s de aparelhos. Por \u00faltimo, inteiramente imobilizada num leito, abria e fechava um \u00fanico olho. At\u00e9 que esse olho deixou de se abrir e ela morreu. Quando o pai confessou ao filho que n\u00e3o acreditava no sobrenatural, apenas na mat\u00e9ria, e que ao morrer retornaria ao p\u00f3, o homem encurvado assustou-se. O pai recitava um poema sobre a casa suspensa, atrapalhou-se na ordem das estrofes e esqueceu alguns versos. \u201cMinha mem\u00f3ria falhou, estou acabado\u201d, disse ao filho. Uma semana depois, morreu. <\/span><\/p>\n

Sobrou contar essa hist\u00f3ria.<\/span><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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