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{"id":1837,"date":"2021-10-20T06:09:00","date_gmt":"2021-10-20T09:09:00","guid":{"rendered":"https:\/\/www.ronaldocorreiadebrito.com.br\/site2\/?p=1837"},"modified":"2021-10-20T06:10:13","modified_gmt":"2021-10-20T09:10:13","slug":"saga-de-claudiney-silva-um-quase-morto","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/www.ronaldocorreiadebrito.com.br\/site2\/2021\/10\/saga-de-claudiney-silva-um-quase-morto\/","title":{"rendered":"A saga de Claudiney Silva, um quase morto"},"content":{"rendered":"

S\u00f3 tive a medida exata do sofrimento de Claudiney Silva, paciente de um hospital p\u00fablico onde trabalho, no dia em que vi seu retrato abra\u00e7ado \u00e0 filha de dois anos. Olhando sorridente para a c\u00e2mara, ele nem parecia o enfermo que me habituei a ver, queixoso e transtornado. A imagem tirou-me de tempo. Outras imagens dispostas em sequ\u00eancia num \u00e1lbum, iguais a uma revista em quadrinhos sem bal\u00f5es de fala, me ajudaram a recompor peda\u00e7os da vida de Claudiney, um doente quase an\u00f4nimo que dava a impress\u00e3o de n\u00e3o ter hist\u00f3ria.\u00a0 <\/span>Um escritor famoso queixou-se de que os m\u00e9dicos possuem o olhar horizontal, como o dos atores de teatro que contemplam o nada. Acho que muitas vezes evitamos enxergar o oceano de sofrimento que nos cerca, talvez por sobreviv\u00eancia.<\/span><\/p>\n

Claudiney Silva tem vinte e tr\u00eas anos. Quando levou o tiro que o deixou sem sensibilidade da cintura para baixo e sem poder andar, acabara de completar vinte e um. Vendia ovos em Ponte dos Carvalhos, na periferia do Recife. Dois rapazes o abordaram na descida de um \u00f4nibus. Ele tentou esconder o apurado de cento e noventa reais e um dos assaltantes alvejou sua coluna vertebral. Bandidos nunca erram a pontaria.<\/span><\/p>\n

Claudiney, que n\u00e3o tinha planos al\u00e9m da sobreviv\u00eancia, come\u00e7ou uma via crucie de sofrimento, no instante em que caiu baleado. Tentou levantar-se, mas as pernas n\u00e3o obedeceram. Socorrido na Emerg\u00eancia do Hospital da Restaura\u00e7\u00e3o, ficou internado por muito tempo, o bastante para saber que quase nada podia ser feito por ele. Teve alta com as primeiras escaras na regi\u00e3o sacral, que iriam se infectar e acometer outras \u00e1reas do corpo.<\/span><\/p>\n

Na foto em que aparece bebendo cerveja ao lado de quatro amigos, Claudiney veste bermuda e camiseta e exibe um corpo naturalmente musculoso. \u00c9 poss\u00edvel que Marlene, a mulher catorze anos mais velha que o recebeu em casa como companheiro, o achasse bonito. Se beleza \u00e9 uma aura de vitalidade, no retrato \u00e9 f\u00e1cil encontr\u00e1-la. No rosto atual de Claudiney n\u00e3o enxergamos nenhum dos sinais que chamamos de belo. A menos que idealizemos a palidez, a magreza extrema e os cabelos finos e quebradi\u00e7os, como faziam os poetas rom\u00e2nticos.<\/span><\/p>\n

Ao sair do hospital em sua primeira alta, Claudiney Santos voltou para a av\u00f3 que o adotara, quando nasceu. Marlene, a mulher com quem tivera uma filha, o expulsara de casa quando ficou sabendo que o companheiro contra\u00edra uma doen\u00e7a ven\u00e9rea. N\u00e3o perdoou a trai\u00e7\u00e3o com uma prima de dezessete anos, na vida de prostituta desde os treze. Marlene, que n\u00e3o \u00e9 bonita, tamb\u00e9m aparece numa foto, tirada em frente a uma Kombi de lota\u00e7\u00e3o. Veste shorts bem curto e blusa deixando a barriga de fora.\u00a0<\/span><\/p>\n

Nos primeiros dias em que Claudiney ficou na casa da av\u00f3, Marlene levava suas refei\u00e7\u00f5es, embora n\u00e3o tivesse mais nada com ele. Pura miseric\u00f3rdia. Claudiney n\u00e3o recusava porque a situa\u00e7\u00e3o era dif\u00edcil e em certas horas n\u00e3o d\u00e1 para bancar o orgulhoso. Sem maiores remorsos, compreendeu que a ex-mulher n\u00e3o merecia a sacanagem que fizera com ela. Para tentar redimir-se, contou a Marlene que batera na prima quando descobriu que estava com blenorragia, mas ela n\u00e3o se tocou. Soube mais tarde que ela j\u00e1 andava de caso com um motorista.\u00a0 \u00a0<\/span><\/span><\/p>\n

Como n\u00e3o tinha emprego fixo, nem recolhia INSS, Claudiney ficou a ver navios num porto inseguro. S\u00f3 tinha a av\u00f3 para socorr\u00ea-lo, igualzinho a quando nasceu. Marlene rareou as visitas, apagou as lembran\u00e7as do que faziam juntos em noites calientes e desapareceu. Os amigos da cerveja tomaram ch\u00e1 de sumi\u00e7o. S\u00f3 as escaras aumentaram, e a infec\u00e7\u00e3o ganhou corpo. Claudiney precisou ser novamente internado num hospital p\u00fablico. Vive h\u00e1 tr\u00eas meses sob os cuidados do Estado, o mesmo que n\u00e3o lhe garantiu seguran\u00e7a.<\/span><\/p>\n

Claudiney, como todos os que nascem, ir\u00e1 morrer. Mas sofrer\u00e1 horrores at\u00e9 que chegue sua hora. A infec\u00e7\u00e3o destr\u00f3i os tecidos, o sangue, a carne, apesar dos cuidados de m\u00e9dicos, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, nutricionistas, fisioterapeutas, psic\u00f3logos e terapeutas ocupacionais. Os investimentos para debelar a infec\u00e7\u00e3o e melhorar o estado nutricional de Claudiney s\u00e3o alt\u00edssimos. Os antibi\u00f3ticos, a albumina e os curativos especiais custam caro, dinheiro que poderia ser usado na preven\u00e7\u00e3o de doen\u00e7as end\u00eamicas, em saneamento b\u00e1sico, em educa\u00e7\u00e3o.<\/span><\/p>\n

Internado h\u00e1 tr\u00eas meses, Claudiney espera alcan\u00e7ar condi\u00e7\u00f5es cl\u00ednicas para submeter-se \u00e0 desarticula\u00e7\u00e3o dos membros inferiores, uma forma radical de amputa\u00e7\u00e3o. Antes, precisar\u00e1 fazer outras cirurgias. Os procedimentos lhe dar\u00e3o chances de viver um pouco mais e melhor. Agarra-se \u00e0 vida com unhas e dentes. Cobra aten\u00e7\u00e3o e cuidados da equipe, como qualquer paciente que se cura e sai de alta caminhando. Igualzinho a ele, existe outro paciente na enfermaria. E muitos e muitos outros espalhados por Pernambuco e pelo Brasil. Todos v\u00edtimas da viol\u00eancia.<\/span><\/p>\n

O Estado gasta fortuna para cuidar desses quase mortos, mas falha em cuidar dos vivos. N\u00e3o seria mais barato, raciocinando friamente como um economista, prevenir a viol\u00eancia? O Estado talvez possua o olhar horizontal, n\u00e3o enxerga mis\u00e9rias e dramas como os de Claudiney. Deixa por nossa conta o sofrimento de tratar as feridas que ele n\u00e3o previne.<\/span><\/p>\n

 <\/p>\n

 <\/p>\n

Cr\u00e9dito da imagem: B\u00e1rbara Wagner – Bras\u00edlia Teimosa<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

S\u00f3 tive a medida exata do sofrimento de Claudiney Silva, paciente de um hospital p\u00fablico onde trabalho, no dia em que vi seu retrato abra\u00e7ado \u00e0 filha de dois anos. 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