Na festa em que n\u00e3o conhe\u00e7o ningu\u00e9m, o anfitri\u00e3o me senta ao lado de um casal, imaginando afinidades. Apresenta-me como um literato nordestino \u2013 meu Deus! \u2013, e remexe na mem\u00f3ria em busca de algum t\u00edtulo que possa ilustrar-me.<\/p>\n

Depois de um esfor\u00e7o que me desgasta a timidez, finalmente lembra:<\/p>\n

\u2013 Ele \u00e9 autor daquela pecinha… Como \u00e9 mesmo? O Menino Jesus<\/em>. N\u00e3o \u00e9 isso?<\/p>\n

\u2013 Baile do Menino Deus<\/em> \u2013 corrijo envergonhado. N\u00e3o se passaram tr\u00eas minutos e sonho que uma nave espacial me abduz, e me deixa alguns anos de f\u00e9rias em Marte.<\/p>\n

\u2013 Ent\u00e3o o senhor tamb\u00e9m \u00e9 escritor?<\/p>\n

Quem me faz a pergunta \u00e9 a mo\u00e7a. Eu, que sempre tenho d\u00favidas se me apresente como m\u00e9dico ou escritor, imagino estar diante de uma poetisa ou romancista.<\/p>\n

\u2013 Bem…<\/p>\n

\u2013 Ele escreve, sim \u2013 garante o acompanhante. J\u00e1 li um artigo dele na Continente<\/em>. Era a hist\u00f3ria de uns \u00f3culos quebrados.<\/p>\n

Agrade\u00e7o a lembran\u00e7a. Surpreendo-me com a objetividade do leitor, resumindo duas p\u00e1ginas de uma cr\u00f4nica, em meia linha.<\/p>\n

\u2013 Faz tempo que o senhor leu. Escrevi o texto h\u00e1 seis anos \u2013 comento constrangido.<\/p>\n

Narrava uma experi\u00eancia num teatro interativo. Escapei com vida do atentado, mas ainda me quebraram os \u00f3culos. Um artigo modesto. Preferia que o esquecessem. Mas o interlocutor junto de quem me sentaram no baile de formatura, n\u00e3o me perdoa. Insiste em lembrar minhas agruras.<\/p>\n

Tento mudar de assunto, nem sei se os dois me ouvem, em meio ao barulho da orquestra e das vozes.<\/p>\n

\u2013 Escrevi outras coisas, \u00e9 verdade.<\/p>\n

\u2013 Vi no jornal, mas n\u00e3o tive oportunidade de ler. O amigo podia conseguir um exemplar para mim?<\/p>\n

\u2013 Desculpe. A editora manda poucos livros para o autor.<\/p>\n

\u2013 Ningu\u00e9m possui dinheiro para comprar tudo o que \u00e9 lan\u00e7ado. Estabele\u00e7o prioridades. Em primeiro lugar os cl\u00e1ssicos.
\nFinjo que n\u00e3o escutei. Por sorte, a orquestra aumentou o volume num sucesso de Roberto Carlos. Penso em tomar um chope, mas n\u00e3o bebo \u00e1lcool. Olho para as outras mesas, s\u00e3o todos alien\u00edgenas. Viro-me para a mo\u00e7a, pedindo socorro.<\/p>\n

\u2013 E voc\u00ea, escreve muito? \u2013 pergunto sem interesse, tentando escapar \u00e0 berlinda.<\/p>\n

\u2013 Adoro escrever. Depois que frequentei a oficina liter\u00e1ria do professor Houdini, quebrei minhas amarras. Parece magia. Dez anos de psican\u00e1lise lacaniana n\u00e3o fizeram por mim o que ele fez.<\/p>\n

\u2013 Compreendo.<\/p>\n

\u2013 Escrever \u00e9 mais delicioso do que comer bolo de chocolate com calda de caramelo. Voc\u00ea n\u00e3o acha?<\/p>\n

\u2013 Bem…<\/p>\n

\u2013 Isso mesmo, faz um bem danado. Quando acabei meu \u00faltimo namoro, enchi um caderno de l\u00e1grimas e poemas.<\/p>\n

Escute esses versos:<\/p>\n

Partes sem fechar a porta<\/em>
\n E na manh\u00e3 de outono<\/em>
\n O frio invade nossa casa.<\/em><\/p>\n

O que acha?<\/p>\n

\u2013 Talvez…<\/p>\n

\u2013 Gosto muito da solu\u00e7\u00e3o do frio adentrando a intimidade do lar, enquanto um cora\u00e7\u00e3o enregela de sofrimento.<\/p>\n

\u2013 De fato…<\/p>\n

\u2013 Eu falo pra todo mundo, essa mo\u00e7a \u00e9 um dos maiores talentos do Recife. S\u00f3 a cegueira dos editores e cr\u00edticos justifica n\u00e3o ter estourado nas paradas.<\/p>\n

E eu, que sempre crio imagens para o que escuto, vejo o corpo franzino da poetisa se estilha\u00e7ando em mil versos. Daria um poema concreto.<\/p>\n

\u2013 Houdini j\u00e1 disse para ela: escreva minha filha, escreva! Talento n\u00e3o lhe falta. Todo mundo \u00e9 escritor, at\u00e9 prova em contr\u00e1rio. Eu mesmo j\u00e1 me arrisquei numas p\u00e1ginas. Sou regionalista assumido.<\/p>\n

\u2013 Fale do seu \u00faltimo conto! \u2013 a mo\u00e7a encoraja o velhote, que j\u00e1 nem precisa de est\u00edmulo, depois do quarto whisky.<\/p>\n

\u2013 Deixe pra l\u00e1! Estamos diante de uma sumidade. Quem sou eu para me comparar?<\/p>\n

\u2013 Mod\u00e9stia. Cada um possui um estilo.<\/p>\n

\u2013 \u00c9 verdade. Regionalismo pra mim \u00e9 regionalismo, n\u00e3o tem panos mornos. Hist\u00f3ria boa precisa de coronel, padre, delegado, beata, cangaceiro e mo\u00e7a donzela. E se n\u00e3o tiver come\u00e7o, meio e fim n\u00e3o presta. \u00c9 pura tapea\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Olho em volta, desamparado.<\/p>\n

A mo\u00e7a empolga-se.<\/p>\n

\u2013 Como \u00e9 o t\u00edtulo do conto?<\/p>\n

\u2013 O Bode Cheiroso.<\/p>\n

Sem chances de terra \u00e0 vista, capitulo e pe\u00e7o:<\/p>\n

\u2013 Gar\u00e7om, um whisky duplo!<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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