Encontrei um amigo, professor de f\u00edsica na universidade. Fiz a besteira de perguntar:<\/p>\n

\u2013 E a\u00ed, como vai?<\/p>\n

Ele nem me deu tempo de refazer a pergunta num conceito menos cinem\u00e1tico. Embora seja especialista em qu\u00e2ntica, gastou suas milhas.<\/p>\n

\u2013 Agora em setembro, fico quinze dias em Ohio. Em outubro viajo ao Jap\u00e3o, para um congresso. Em novembro, passo uma semana em Madri. Em dezembro, volto duas vezes aos Estados Unidos.<\/p>\n

Eu desejava saber como ele ia de sa\u00fade, no casamento e no esporte a vela. Esqueci o quanto se tornou perigoso conjugar o verbo \u201cir\u201d nas frases interrogativas. Tenha cuidado ao faz\u00ea-lo, poder\u00e1 ser bombardeado com narrativas t\u00e3o enfadonhas quanto as viagens do veneziano Marco Polo, ou os relatos de cidade invis\u00edveis como as de \u00cdtalo Calvino.<\/p>\n

\u2013 Mas voc\u00ea est\u00e1 bem? \u2013 tento reverter a pergunta.
\n\u2013 Quem n\u00e3o estaria bem na perspectiva de um Ano Novo em Paris?<\/p>\n

Mesmo alojado numa \u00e1gua furtada, no sexto andar de um pr\u00e9dio sem elevador, no bairro de Montmartre. No c\u00f4modo ex\u00edguo, fica-se de p\u00e9 em pouco mais de seis metros quadrados. No espa\u00e7o restante, \u00e9 preciso engatinhar.<\/p>\n

\u2013 E sua maravilhosa casa na V\u00e1rzea, com jardins tropicais? N\u00e3o sente falta da amplid\u00e3o? \u2013 me arrisco t\u00edmido.
\n\u2013 Paris \u00e9 Paris.
\n\u2013 Bela frase \u2013 comento para disfar\u00e7ar o riso.
\n\u2013 Em Paris vive-se nas ruas e nos caf\u00e9s.
\n\u2013 Um pouco complicado para mim, sou escritor e s\u00f3 consigo trabalhar em casa.
\n\u2013 A grande literatura francesa foi produzida em caf\u00e9s.
\n\u2013 Faz algum tempo, n\u00e3o? Na vez em que estive em Paris pagava-se uma fortuna por um cafezinho. De p\u00e9, no balc\u00e3o, custava um pre\u00e7o. Sentado dentro da cafeteria, outro valor. Na cal\u00e7ada, com direito a cadeira e mesinha, o equivalente ao sal\u00e1rio de um m\u00eas. E o rel\u00f3gio marcava as horas.
\n\u2013 Exagero! Pra que \u00e9 que se ganha dinheiro?
\n\u2013 Pra gastar…
\n\u2013 Isso mesmo, pra gastar nas viagens. N\u00e3o reparou que todo mundo est\u00e1 viajando?
\n\u2013 \u00c9 verdade, alguns bem desconfort\u00e1veis. Viu os document\u00e1rios sobre imigrantes tentando entrar na Europa?
\n\u2013 Nunca vi.
\n\u2013 Seria bom ver.
\n\u2013 Viajo como professor, pago pela universidade.
\n\u2013 \u00c9 bem melhor.
\n\u2013 Em maio estarei em Berlim, num congresso.
\n\u2013 Puxa. E tua mulher?
\n\u2013 Tamb\u00e9m faz as viagens dela, pelo Departamento de Matem\u00e1tica.<\/p>\n

Arrisco mais uma pergunta:<\/p>\n

\u2013 E voc\u00eas se encontram?<\/p>\n

Ele ri seguro. Nada como a convic\u00e7\u00e3o dos f\u00edsicos e matem\u00e1ticos, sabem exatamente o que desejam e por isso escolheram \u201cexatas\u201d, no vestibular. Escritores optam por \u201chumanas\u201d, um caminho tortuoso e escorregadio, bem mais complicado.<\/p>\n

\u2013 Quando os congressos coincidem na mesma cidade, costumo v\u00ea-la.<\/p>\n

Tento dizer alguma coisa, mas ele se antecipa:<\/p>\n

\u2013 Por qual motivo nosso casamento duraria tanto tempo?<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Encontrei um amigo, professor de f\u00edsica na universidade. Fiz a besteira de perguntar: \u2013 E a\u00ed, como vai? Ele nem me deu tempo de refazer a pergunta num conceito menos cinem\u00e1tico. Embora seja especialista em qu\u00e2ntica, gastou suas milhas. \u2013 Agora em setembro, fico quinze…<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":650,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"content-type":"","footnotes":""},"categories":[8,45],"tags":[66,53,67],"class_list":["post-620","post","type-post","status-publish","format-standard","has-post-thumbnail","hentry","category-blog","category-slider","tag-casamento","tag-cronica","tag-viagens"],"yoast_head":"\n