No dia 26 de julho, enquanto atendia os doentes, escutei um canto forte e bonito, parecendo a voz de Clementina de Jesus. Nada demais cantar, embora as pessoas cada dia cantem menos enquanto trabalham ou se divertem. O inusitado \u00e9 que a mulher cantava dentro de uma enfermaria, num hospital de trauma com mais de cem leitos. A cantiga veio logo depois de gritos sofridos, por causa dos curativos dolorosos a que ela estava sendo submetida. Parecia um al\u00edvio ou pedido de desculpas pelo transtorno que os gritos causaram.<\/p>\n

Deixei de examinar um paciente, para ouvir o que cantavam. Seria um ponto de umbanda? Melhor perguntar.<\/p>\n

\u2013 Gostei de sua voz. A senhora canta bem.
\n\u2013 Gostou? Era um hino evang\u00e9lico.<\/p>\n

Conhe\u00e7o o disfarce. Antes, os cultos religiosos negros se escondiam atr\u00e1s das devo\u00e7\u00f5es cat\u00f3licas, por conta das persegui\u00e7\u00f5es da Igreja e da pol\u00edcia. No mais famoso terreiro nag\u00f4 da cidade do Recife, o S\u00edtio de Pai Ad\u00e3o, onde existe plantada uma gameleira de copa imensa, o Iroco, os devotos sa\u00edam \u00e0 rua com andor para S\u00e3o Jo\u00e3o e, depois, a portas fechadas, tocavam para Xang\u00f4. Cada dia menos prestigiadas e sem liturgias, as religi\u00f5es africanas e seus praticantes agora se diluem nas seitas evang\u00e9licas, que tamb\u00e9m demonizam os orix\u00e1s. Percebendo a vergonha da paciente em afirmar suas origens, tamb\u00e9m uso de artimanhas em minha investiga\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

\u2013 N\u00e3o achei que fosse um hino. Parecia mais um bendito de romeiro do Padrinho C\u00edcero.<\/p>\n

A negra velha de oitenta e sete anos abre um sorriso e solta uma gargalhada. Possui uma voz forte, com um acento no \u201cr\u201d que apenas os antigos possuem. Esquece o desespero por estar internada h\u00e1 mais de dois meses, de in\u00edcio para uma cirurgia de fratura de f\u00eamur, que nunca foi realizada, e agora para o tratamento das complica\u00e7\u00f5es do internamento prolongado \u2013 escaras e infec\u00e7\u00f5es.<\/p>\n

\u2013 Fui ao Juazeiro, sim. N\u00e3o do jeito que v\u00e3o agora, em caminh\u00e3o e \u00f4nibus. Viajamos a p\u00e9, em lombo de jumento, minha irm\u00e3 mais nova escanchada na cintura de mam\u00e3e. O Padre ainda era vivo e batizou a menina. A gente dormia debaixo dos p\u00e9s de \u00e1rvore, acendia fogo, cozinhava o comer. J\u00e1 ouviu falar em Lampi\u00e3o, em Antonio Silvino? N\u00e3o eram como os bandidos de hoje. Agora tem mais gente e mais bandido. Me escondi muitas vezes com medo de cangaceiro.<\/p>\n

E conta hist\u00f3rias de canga\u00e7o, sert\u00e3o, viagens, terrores. Relembra os irm\u00e3os, as tias velhas encarquilhadas em cima da cama, os parentes escravos. Felizmente livrou-se da escravid\u00e3o, mas se tivesse de ser, seria. Parece outra \u00e0 medida que fala, liberando a mem\u00f3ria soterrada, agora fresca e l\u00facida. Abre a tampa do ba\u00fa de reminisc\u00eancias. Reconstitui o dia em que Get\u00falio Vargas se matou, refaz an\u00e1lises jornal\u00edsticas da \u00e9poca. Chora inconsol\u00e1vel quando fala do governador Miguel Arraes. Gra\u00e7as a ele ganhou um terreno e ergueu um barraco.<\/p>\n

\u2013 E o ponto?
\n\u2013 Que ponto?
\n\u2013 O que a senhora cantava h\u00e1 pouco? N\u00e3o me engane, tamb\u00e9m sei das coisas. Nunca guardei quarto, mas jogaram pra mim e me deram um Orixal\u00e1 de frente e uma Ians\u00e3 de costa.<\/p>\n

Ela fica muda. Olha para os cantos e baixa a voz.<\/p>\n

\u2013 O senhor sabe, \u00e9 a religi\u00e3o de meu povo, da na\u00e7\u00e3o. Tamb\u00e9m n\u00e3o raspei cabe\u00e7a, mas andei em tudo que \u00e9 terreiro do Recife e recebo os orix\u00e1s. Agora n\u00e3o vou mais a lugar nenhum. Mas se eu permitir, incorporo aqui mesmo, nessa cama.
\n\u2013 E quem \u00e9 seu santo?
\n\u2013 N\u00e3o posso dizer, \u00e9 segredo.<\/p>\n

Por\u00e9m revela os nomes de todas as casas ilustres do Recife, onde se cultuavam os orix\u00e1s. Conta as hist\u00f3rias dos pais e das m\u00e3es de santos, as particularidades de cada um e as futricas dos terreiros. Confiante no interlocutor, ela ignora a companheira de enfermaria, eleva a voz e solta a l\u00edngua. D\u00e1 mais risadas, se agita, faz trejeitos no rosto, trai suas origens. Arrisco-me.<\/p>\n

\u2013 A senhora \u00e9 filha de Xang\u00f4.<\/p>\n

Ela ri satisfeita.<\/p>\n

\u2013 E da velha Nan\u00e3.<\/p>\n

Nan\u00e3 \u00e9 a mais temida de todos os orix\u00e1s. \u00c9 tamb\u00e9m a mais velha, poderosa e respeitada. Seus c\u00e2nticos s\u00e3o s\u00faplicas para que levem a morte para longe, permitindo que a vida se mantenha.<\/p>\n

26 de julho \u00e9 o dia de Senhora Santana, o dia de Nan\u00e3. Seria para ela que a mulher cantava?<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

No dia 26 de julho, enquanto atendia os doentes, escutei um canto forte e bonito, parecendo a voz de Clementina de Jesus. Nada demais cantar, embora as pessoas cada dia cantem menos enquanto trabalham ou se divertem. O inusitado \u00e9 que a mulher cantava dentro…<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":649,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"content-type":"","footnotes":""},"categories":[8,45],"tags":[53,68],"class_list":["post-625","post","type-post","status-publish","format-standard","has-post-thumbnail","hentry","category-blog","category-slider","tag-cronica","tag-nana"],"yoast_head":"\n