Dizem que o chin\u00eas Lao Ts\u00e9, que viveu no s\u00e9culo VI antes de Cristo, abandonou a vida na corte quando completou quarenta anos de idade. Recolheu-se \u00e0 floresta at\u00e9 os oitenta anos e, nesse tempo de ascese e medita\u00e7\u00e3o, escreveu o Tao Te King, livro que \u00e9 a base do pensamento e da educa\u00e7\u00e3o chinesa, junto com as obras do fil\u00f3sofo Conf\u00facio. Lao Ts\u00e9, fiel ao tao\u00edsmo que ensina que pelo n\u00e3o agir tudo \u00e9 agido, entregou o seu manuscrito a um guarda de fronteira, nada falou sobre ele, nada recomendou, e foi embora. Por conta desse misterioso n\u00e3o fazer ou n\u00e3o interferir, que tudo realiza e resolve, o livro cumpriu seu destino, virou ensinamento para milh\u00f5es de pessoas, e chegou at\u00e9 n\u00f3s.<\/p>\n

Quem \u00e9 o nosso guarda de fronteira? A quem entregaremos os nossos manuscritos ao abandonarmos a floresta? Eis a met\u00e1fora: porque ningu\u00e9m mais enche de sil\u00eancio o cora\u00e7\u00e3o e contempla isento de desejos o incessante vaiv\u00e9m do mundo. O escritor busca comunicar-se com seu p\u00fablico. Uns de forma serena. Outros, desvairados, correm atr\u00e1s de quem os leia, ou escute, ou aplauda.<\/p>\n

Ao mesmo tempo em que precisa do exerc\u00edcio silencioso da cria\u00e7\u00e3o, de estar sozinho trabalhando, o mundo cobra cada dia mais que ele chegue ao limite de sua resist\u00eancia, cumprindo uma maratona de confer\u00eancias, entrevistas, artigos, uma exposi\u00e7\u00e3o do corpo e da alma para ser visto, n\u00e3o esquecido, lido, cortejado. J\u00e1 n\u00e3o existem florestas, nem guardas. Poucos sobrevivem ao novo enigma da esfinge: preserva-te e ser\u00e1s esquecido ou mostra-te e ser\u00e1s devorado.
\nO prazeroso ou atormentado exerc\u00edcio da escrita tem pouco a ver com o giro pelo mundo, \u00e0 cata de leitores. Pouco a ver com a ca\u00e7a aos pr\u00eamios. S\u00e3o nuvens de palavras \/ meu tormento. \/ O peito em desejo, \/ sempre aberto: \/ fogo estranho que reluz \/ na noite escura \/ de S\u00e3o Jo\u00e3o da Cruz. \/ Nuvens: \/ rebanho de pensamentos. \/ Sopra do c\u00e9u um vago lamento, \/ como um risco de luz, \/ na noite escura \/ de S\u00e3o Jo\u00e3o da Cruz*.<\/p>\n

Os artistas que n\u00e3o assinaram suas obras, an\u00f4nimos sem temor ao esquecimento, se ergueram \u00e0s alturas sem desejos, e encheram de sil\u00eancio o cora\u00e7\u00e3o. Talvez esses, talvez, tenham conhecido a alegria de criar pela mesma raz\u00e3o porque respiram, pulsam e amam. Criar para viver e viver para criar. E s\u00f3. E tanto. Rolar dentro de si \/ como a pedra no po\u00e7o. \/ Do arco do corpo \/ desencadear o sopro. \/ Avistar \/ onde o olhar n\u00e3o alcan\u00e7a: \/ ler os passos de Deus \/ dentro da dan\u00e7a*.<\/p>\n

Buscar uma medida exata do que significa a cria\u00e7\u00e3o na arte. H\u00e1 diferen\u00e7as no ato de criar ou tudo \u00e9 um mesmo abandono de si? O artista Raimundo Aniceto, da Banda Caba\u00e7al dos Irm\u00e3os Aniceto, do Crato, deu-me uma li\u00e7\u00e3o que nunca esqueci.<\/p>\n

Fui visit\u00e1-lo numa v\u00e9spera da festa de Santo Antonio. Ele se arrumava para a noite que passaria sem dormir, tocando e dan\u00e7ando. A esposa cozinhava o jantar e o olhava de vez em quando, enternecida. Eu fazia perguntas sobre a m\u00fasica que ele tocava, sobre a dan\u00e7a, a hist\u00f3ria da banda. Vasculhava l\u00e1 dentro dele para descobrir as pistas de um g\u00eanio do povo. Acredito que os meus elogios e as perguntas o incomodavam. Raimundo parecia indiferente \u00e0 personifica\u00e7\u00e3o do artista que eu tra\u00e7ava para ele. De repente, levantou-se da cadeira, me chamou, e eu acompanhei-o at\u00e9 um quarto fechado. Ele abriu a porta, revelando o interior do c\u00f4modo. N\u00e3o compreendi. Pensei que me mostraria instrumentos raros, que confeccionara e tocava. Ele apontou sacos de arroz, feij\u00e3o e milho empilhados. Eu plantei e colhi tudo isso, falou-me sorridente.<\/p>\n

Bela li\u00e7\u00e3o que jamais esqueci. Todos os of\u00edcios s\u00e3o sagrados, e o escritor n\u00e3o \u00e9 mais que o padeiro, nem o carpinteiro, nem o pintor de paredes. Deus n\u00e3o prefere o m\u00fasico ao pescador, como preferiu o Abel que pastorava ovelhas ao Caim que cultivava a terra. O s\u00e1bio tudo realiza, e nada considera seu. Tudo faz, e n\u00e3o se apega \u00e0 sua obra, escreveu Lao Ts\u00e9. Talvez por isso tenha deixado os seus originais nas m\u00e3os de um desconhecido, sem importar-se com o destino que teriam. O guarda n\u00e3o era um editor renomado, n\u00e3o programou lan\u00e7amento, n\u00e3o tra\u00e7ou planos de m\u00eddia, n\u00e3o inscreveu o livro em concurso liter\u00e1rio. E mesmo assim ele vive h\u00e1 dois mil e seiscentos anos.<\/p>\n

Mas isso \u00e9 uma lenda e n\u00e3o existem guardas de fronteira como os antigos. O poeta busca a medida entre o ato solit\u00e1rio da cria\u00e7\u00e3o e o mundo que o ignora ou traga.<\/p>\n

Dessoletro-me sozinho
\nNeste canto de sala.
\nO vulto vem e espreita.
\nMais nada… *<\/p>\n

* Everardo Nor\u00f5es<\/em>, no livro A Rua do Padre Ingl\u00eas<\/em><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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