Nem me lembro se havia completado 14 anos. Eu buscava filmes de impacto, mesmo incompreens\u00edveis. \u00c0s vezes era derrotado pelo cineasta ou pelo p\u00fablico, como aconteceu na sess\u00e3o do filme A chinesa<\/em>, do franc\u00eas Jean Luc Godard. Profundamente irrealista, supostamente tratando do racha entre o comunismo chin\u00eas e o russo, o filme provocou curto circuito nos c\u00e9rebros prosaicos dos cin\u00e9filos cratenses. Depois de meia hora de proje\u00e7\u00e3o, no Cine Cassino, todos abandonaram a sala e ocuparam o hall do velho sobrado. Uma chuva forte interditava a pra\u00e7a Siqueira Campos em frente, e o Caf\u00e9 L\u00edder, \u00e0 esquerda. As pessoas preferiam olhar a chuva e os rel\u00e2mpagos cortando o c\u00e9u, a assistir a pel\u00edcula projetada. Era uma quarta-feira, sess\u00e3o das 19h30. Sozinho na sala, sem compreender o que via, fui abordado pelo bilheteiro.<\/p>\n

\u2013 Vamos desligar o projetor.
\n\u2013 Por qu\u00ea?
\n\u2013 Todo mundo foi embora.<\/p>\n

Levantei-me aliviado. Eu n\u00e3o alcan\u00e7ava a linguagem do filme, mesmo assim teimava em continuar assistindo. Sa\u00ed para o tumulto do hall e engrossei o n\u00famero de espectadores dos fen\u00f4menos naturais. Parec\u00edamos felizes com nossa escolha, lamentando apenas n\u00e3o termos um bom caf\u00e9. A noite ficou c\u00e9lebre pela recusa cratense ao cinema de Godard, pelo cataclismo que arrasou a cidade e por uma trag\u00e9dia. Ao atravessar a rua da Vala, uma jovem caiu dentro do canal e foi arrastada pelas \u00e1guas turbulentas. Seu corpo encontrado no meio de um canavial tinha sido destro\u00e7ado pelos choques com as pedras e os troncos das \u00e1rvores.<\/p>\n

No Recife, onde me preparo para o vestibular de medicina, leio e coleciono os suplementos culturais do Jornal do Commercio, encho minha cabe\u00e7a de cinema novo, neo-realismo e nouvelle vague<\/em>. A cidade s\u00f3 falava no filme Teorema<\/em>, do diretor italiano Pier Paolo Pasolini. Descubro ser o mesmo que havia inquietado o adolescente provinciano com sua leitura do Evangelho de S\u00e3o Mateus<\/em>. Nesse tempo, ia-se aos cinemas com devo\u00e7\u00e3o. O Recife possu\u00eda salas e sess\u00f5es exclusivas para filmes de arte. As filas desceram a Conde da Boa Vista quando foram exibidos no S\u00e3o Luiz, em temporada de semanas, Roma<\/em> e Morte em Veneza<\/em>, e at\u00e9 o Satyricon<\/em>, de Fellini. Mas, nenhum filme causou tanto estupor na sociedade como Teorema<\/em>. Talvez, O \u00daltimo Tango em Paris<\/em> ou O Imp\u00e9rio dos Sentidos<\/em>, com abordagens escandalosas para a \u00e9poca.<\/p>\n

Em Teorema<\/em>, o n\u00facleo de conflitos \u00e9 uma fam\u00edlia burguesa. Pai, m\u00e3e, filhos e empregada n\u00e3o ser\u00e3o os mesmos, depois que um visitante anunciado por um anjo atravessa suas vidas. De forte conota\u00e7\u00e3o simb\u00f3lica, cada personagem representa um segmento da sociedade italiana, exposta em suas fragilidades. Viv\u00edamos no Brasil o per\u00edodo mais repressivo da ditadura militar, a Igreja Cat\u00f3lica pregava a teologia da liberta\u00e7\u00e3o, o feminismo assentava suas bases e, atrav\u00e9s da contracultura, ensaiava-se uma revolu\u00e7\u00e3o sexual. Terreno f\u00e9rtil \u00e0s ideias de Pasolini, num mundo dicotomizado em fascismo e comunismo, direita e esquerda, deus e diabo, bem e mal.<\/p>\n

Em 1975, Pasolini \u00e9 assassinado. O ator que interpretara o anjo da anuncia\u00e7\u00e3o em Teorema<\/em> reconhece o corpo destru\u00eddo. Durante 40 anos a tr\u00e1gica hist\u00f3ria se reconta em diferentes vers\u00f5es. Giuseppe (Pino) Pelosi, assassino confesso, negar\u00e1 anos depois que tivesse sido o \u00fanico executor. Surgem teorias conspirat\u00f3rias. Antes de morrer, Pasolini renegara sua Trilogia da Vida \u2013 Decameron<\/em>, Os Contos de Canterbury<\/em> e As Mil e Uma Noites<\/em> \u2013, por sentir-se v\u00edtima do capitalismo e da ind\u00fastria cinematogr\u00e1fica.<\/p>\n

Nunca assisti Sal\u00f3<\/em>, \u00faltimo filme de Pasolini. Os cinemas se transformaram em supermercados e n\u00e3o consigo ver filmes em shoppings. Preciso de encantamentos que j\u00e1 n\u00e3o encontro nas salas de proje\u00e7\u00e3o. Sou parecido com a ing\u00eanua Cec\u00edlia, hero\u00edna de A Rosa P\u00farpura do Cairo<\/em>, do cineasta Wood Allen. Perco-me dentro dos enredos e me transformo nos personagens da tela.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

Nem me lembro se havia completado 14 anos. Eu buscava filmes de impacto, mesmo incompreens\u00edveis. \u00c0s vezes era derrotado pelo cineasta ou pelo p\u00fablico, como aconteceu na sess\u00e3o do filme A chinesa, do franc\u00eas Jean Luc Godard. Profundamente irrealista, supostamente tratando do racha entre o…<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":697,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"content-type":"","footnotes":""},"categories":[8,45],"tags":[44,82],"class_list":["post-690","post","type-post","status-publish","format-standard","has-post-thumbnail","hentry","category-blog","category-slider","tag-cinema","tag-godard"],"yoast_head":"\n