Quando eu tinha cinco anos vi o Diabo em carne e osso. N\u00e3o era propriamente o Malino, o Satan\u00e1s, o Fute, mas um homem comum, que nem chamaria aten\u00e7\u00e3o se n\u00e3o usasse capa vermelha e preta, rabo comprido e chifres. Eu acabava de chegar ao Crato, vindo dos Inhamuns, onde as not\u00edcias do carnaval eram remotas. Meu pai sintonizava a R\u00e1dio Clube de Pernambuco num aparelho Philips \u2013 comprado por uma fortuna \u2013, que causou verdadeira revolu\u00e7\u00e3o entre os sertanejos acostumados a escutar aboios, toques de viola e sanfona. O sil\u00eancio habitual desapareceu em meio \u00e0s marchas de bloco e frevos can\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

O r\u00e1dio fabuloso era alimentado por uma bateria de carro e, gra\u00e7as ao engenho do meu pai, o mundo entrou porta adentro na nossa casa longe dos centros urbanos. Um desassossego para minha m\u00e3e, que precisava servir caf\u00e9 e dar aten\u00e7\u00e3o \u00e0s visitas, chegadas toda noite para conhecer a geringon\u00e7a falante. Temerosas, elas olhavam a inven\u00e7\u00e3o do terreiro, espreitando com medo. O corpo a ponto de correr e sumir nas estradas esperava algum sinal de alarme, um barulho estranho, o pipoco da m\u00e1quina. Perguntavam como era poss\u00edvel caber tanta gente numa caixa t\u00e3o pequena e qual o tamanho das pessoas espremidas ali dentro. Espalharam o boato de que ningu\u00e9m mais podia falar mal do meu pai, porque ele ouvia tudo no r\u00e1dio. Boato que o deixou com as orelhas sem co\u00e7ar enquanto habitamos aquele deserto.<\/p>\n

O homem fantasiado de Tinhoso, cheirando lan\u00e7a perfume e dando voltas numa pracinha do Crato, s\u00f3 assustava meninos matutos. Meu imagin\u00e1rio ainda n\u00e3o havia elaborado o carnaval que aprendi a amar depois, com os excessos de um mundo de cabe\u00e7a para baixo. O Diabo tomando porres de cloretil se desenhava igualzinho ao que aparecia nas representa\u00e7\u00f5es do arcanjo S\u00e3o Miguel, visto nas igrejas e paredes das fam\u00edlias piedosas. Ao lado de um confession\u00e1rio da Catedral, duas estampas me arrepiaram na primeira vez em que as contemplei. A primeira representava a boa morte: um enfermo sereno, cercado da fam\u00edlia e de anjos que aguardavam para lev\u00e1-lo ao c\u00e9u. A segunda era a morte de um pecador, com os familiares aos prantos, o moribundo de rosto contorcido, dem\u00f4nios tentando arrast\u00e1-lo \u00e0s profundezas do inferno, enquanto anjos bem fr\u00e1geis faziam for\u00e7a para subtra\u00ed-lo \u00e0s garras diab\u00f3licas.<\/p>\n

O encontro inesperado com o Cramulh\u00e3o carnavalesco botou minhas sinapses neuronais para funcionar e elas entraram em pane. Continuei sem compreender o que se passara comigo. N\u00e3o tinha nenhum espelho por perto, mas acredito que saiu fuma\u00e7a pelos meus ouvidos e nariz, o que poderia significar que eu fora contaminado. Pelos poderes de L\u00facifer? N\u00e3o, pelo carnaval, o que d\u00e1 no mesmo.<\/p>\n

O menino que nunca vira uma festa de Momo, apenas escutara acordes de marchas recifenses falando de nomes esquisitos como Felinto, Pedro Salgado, Guilherme e Fenelon, batia de cara com o treloso sem nenhum aviso, como se ele tivesse escapado de uma encruzilhada. As informa\u00e7\u00f5es davam n\u00f3 dentro da cabe\u00e7a e eu buscava compreender como o Azarado, que me ensinaram a temer e odiar, de repente se tornava bonzinho, palha\u00e7o, dando pinotes e correndo atr\u00e1s da meninada. Meu pai at\u00e9 me contara a hist\u00f3ria de um cantador que venceu O Cujo numa peleja de viola. Por conta de que desordem O Mo\u00e7o estava ali em unhas e dentes e n\u00e3o carregava ningu\u00e9m para o inferno, n\u00e3o se danava com as almas pecadoras?<\/p>\n

Por conta do carnaval, essa festa que vira o mundo \u00e0s avessas.<\/p>\n

Enquanto a Igreja Cat\u00f3lica esperava a quarta-feira de cinzas para vestir o roxo da quaresma, guardar jejum e abstin\u00eancia de carne durante quarenta dias, os endemoniados se entregavam \u00e0 esb\u00f3rnia, na festa em que vale comer carne, muita carne, de todos os modos, crua e cozida. O diabo do imagin\u00e1rio crist\u00e3o, como se tivesse sa\u00eddo do cortejo de algum Dion\u00edsio ou Baco, brincava nos seus tr\u00eas dias. E abestalhado eu n\u00e3o saquei de que maneira o mais odiado personagem da mitologia crist\u00e3, Ele, O Satan\u00e1s, virava palha\u00e7o, botando as unhas de fora sem arranhar ningu\u00e9m.<\/p>\n

Acho que amei o carnaval desde esse encontro, pelo absurdo representado nele. Amo um carnaval que n\u00e3o tem nada a ver com o frenesi compulsivo em que o transformaram, que n\u00e3o cumpre pautas de desfiles, n\u00e3o pertence a nenhuma institui\u00e7\u00e3o, nem faz girar a m\u00e1quina ca\u00e7a-n\u00edqueis do turismo a servi\u00e7o de estados, prefeituras e emissoras de televis\u00e3o. Uma festa com o Demo reinando solto e confundindo a ordem estabelecida do mundo.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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