O rapaz africano que nos aborda em Floren\u00e7a, fala como se fosse um velho conhecido. Hoje \u00e9 um dia muito especial para mim, acaba de nascer o meu filho, diz numa mistura de idiomas. De onde voc\u00eas vieram? \u2013 pergunta ao ver nossas malas. Acabamos de descer de um taxi, viemos da esta\u00e7\u00e3o de trens e aguardamos na cal\u00e7ada a propriet\u00e1ria do apartamento que alugamos, num pr\u00e9dio do s\u00e9culo XVI. Do Brasil, minha esposa responde com simpatia e naturalidade. Brasil, ele grita tr\u00eas vezes, parecendo Galv\u00e3o Bueno quando a Sele\u00e7\u00e3o faz um gol em copa do mundo. E nos cumprimenta com a m\u00e3o fechada em punho, igualzinho a todos os jovens. Descubro mais tarde que a euforia ao nome Brasil repete-se nos africanos que circulam por ruas, pra\u00e7as e pontes da cidade.<\/span><\/p>\n

Meu filho d\u00e1 um passo atr\u00e1s, mais por inc\u00f4modo do que por desconfian\u00e7a, e sinaliza para n\u00e3o alimentarmos a conversa. Bem tarde. A esposa e a nora j\u00e1 negociam a compra de min\u00fasculas esculturas em madeira, que segundo o jovem senegal\u00eas trata-se de amuletos. V\u00e3o para frente e para tr\u00e1s na conversa, sem entrarem em acordo no valor da mercadoria. O mascate<\/a> barganha com a sua condi\u00e7\u00e3o de pai recente, abre uma bolsa e oferece pulseiras e outros artesanatos r\u00fasticos. Eu assisto a conversa de longe, me divertindo ao reconhecer a mesma sedu\u00e7\u00e3o dos ciganos que passavam em nossa cidade, quando eu era crian\u00e7a. Felizmente, a anfitri\u00e3 chega alvoro\u00e7ada. Trata-se de uma americana investidora no ramo de alugueis, um modo de sobreviv\u00eancia cada vez mais comum em cidades tur\u00edsticas da Europa. <\/span><\/p>\n

No contrato, foi garantido um primeiro andar com apenas um lance de escada, mas na verdade se trata de um terceiro pavimento. Encaro subir os quatro lances de degraus, carregando as malas. Num impulso de brasileiro habituado a pagar pelo trabalho pesado, olho o jovem negro e sinto desejo de perguntar se n\u00e3o aceita uns euros para carregar as malas junto comigo. Nos tr\u00eas taxis que apanhamos, os motoristas faziam quest\u00e3o de pegar as malas e acomod\u00e1-las nos bagageiros dos seus carros. N\u00e3o aceitavam a menor ajuda, o que n\u00e3o me pareceu ofensivo \u00e0 condi\u00e7\u00e3o de taxista. Cobravam a corrida mais cara por conta disso. A proposta ao senegal\u00eas seria justa, sofro da coluna, meu filho trata duas h\u00e9rnias, minha mulher n\u00e3o tem for\u00e7a para tanto peso. Por\u00e9m, n\u00e3o sinto coragem de propor o biscate<\/a>. Ajudado pela nora e pela anfitri\u00e3 encaro o esfor\u00e7o e a subida \u00edngreme. <\/span><\/p>\n

D\u00e1 pena ver as bugigangas vendidas pelos africanos. De tecnol\u00f3gico apenas uma geringon\u00e7a de metal inventada pelos chineses para distanciar o smartphone e permitir uma selfie abrangente. Centenas de \u00f3culos de formatos e cores diversas, pulseiras, brincos e colares r\u00fasticos, iguais aos dos hippies. Estes deixavam suas casas e fam\u00edlias em protesto aos padr\u00f5es de vida burguesa e ao consumo. Os africanos chegam aos milhares \u00e0 It\u00e1lia, amontoados em navios, que vez por outra afundam, transformando o mediterr\u00e2neo num cemit\u00e9rio. Partem quase sempre da L\u00edbia e entram por Lampedusa<\/a>. Deixam suas fam\u00edlias e culturas por necessidade de sobreviver \u00e0 guerra, aos massacres, \u00e0s doen\u00e7as e a fome. Durante o imp\u00e9rio romano, eles eram trazidos \u00e0 It\u00e1lia, escravizados. Nos s\u00e9culos de colonialismo europeu na \u00c1frica, sofreram formas disfar\u00e7adas de escravid\u00e3o. Agora, chegam voluntariamente \u00e0 Europa dos brancos e n\u00e3o s\u00e3o desejados. <\/span><\/p>\n

N\u00e3o acompanho a fam\u00edlia na visita \u00e0 Santa Croce<\/a>. Renuncio aos afrescos de Giotto<\/a>, ao belo claustro da igreja, aos t\u00famulos de Michelangelo, Galileu e Machiavel. Prefiro ficar do lado de fora, sentado nas escadarias, olhando os chineses barulhentos e agitados, crian\u00e7as e adolescentes italianos com seus professores para visitas guiadas. A garotada come sandu\u00edches de presunto e queijo, ri e brinca. S\u00e3o generosos em suas manifesta\u00e7\u00f5es de afeto. Os africanos sorridentes oferecem pulseiras, colares e \u00f3culos. <\/span><\/p>\n

Rela\u00e7\u00f5es comerciais s\u00e3o estabelecidas, os meninos e as meninas barganham, querem adquirir as bugigangas a qualquer pre\u00e7o, quase todos j\u00e1 exibem \u00f3culos espelhados nos rostos e colares de contas coloridas nos pesco\u00e7os. Brancos e negros se tratam de amigos, cumprimentam-se com as m\u00e3os fechadas, at\u00e9 se abra\u00e7am, num clima de p\u00e2ndega e cordialidade. As diferen\u00e7as parecem ser apenas de cor de pele, os jovens africanos riem alto, tratam os garotos pelos nomes, trocam um nome masculino por um feminino, o que causa mais gargalhadas e brincadeiras. Garotas sem dinheiro oferecem os lanches por pulseiras, voltando \u00e0 era do escambo. Sinto-me contaminado pela sincera alegria entre eles, n\u00e3o percebo nenhuma forma de desprezo ou preconceito, temor ou desconfian\u00e7a.<\/span><\/p>\n

Canso-me de esperar a fam\u00edlia e decido visitar o antigo gueto judeu e a sinagoga. Ando por ruas com edif\u00edcios sem o esplendor de Floren\u00e7a, apartamentos onde se avistam roupas estendidas em varais ou penduradas nas janelas a secar. Trata-se de um bairro sem glamour renascentista ou tur\u00edstico. A sinagoga \u00e9 vigiada por policiais armados, preciso deixar todos os meus pertences num arm\u00e1rio, incluindo o celular, antes de meter-me numa cabine detectadora de metais. Finalmente chego ao jardim e avisto uma parede com os nomes dos m\u00e1rtires do nazismo. <\/span><\/p>\n

Paga-se ingresso um pouco mais caro do que na Santa Croce, mas certamente n\u00e3o \u00e9 por isso que o n\u00famero de visitantes mostra-se pequeno. Um sil\u00eancio incomum \u00e0 cidade nos deixa reflexivos e solenes. Ponho um quip\u00e1 e entro no templo. Ele \u00e9 belo, ao contr\u00e1rio do pequeno museu no andar superior, de acervo modesto.\u00a0 <\/span>Penso nos m\u00e1rtires do cristianismo, h\u00e1 dois mil anos louvados e lembrados pela Igreja Cat\u00f3lica. Leio os nomes dos m\u00e1rtires judeus, de hist\u00f3ria mais recente. A dor e o sacrif\u00edcio me parecem comuns, embora do lado judeu n\u00e3o tenha havido escolha. O correto, no caso deles, nem seria dizer mart\u00edrio, mas exterm\u00ednio.<\/span><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

O rapaz africano que nos aborda em Floren\u00e7a, fala como se fosse um velho conhecido. Hoje \u00e9 um dia muito especial para mim, acaba de nascer o meu filho, diz numa mistura de idiomas. De onde voc\u00eas vieram? \u2013 pergunta ao ver nossas malas. Acabamos…<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":914,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"content-type":"","footnotes":""},"categories":[8,45],"tags":[14,53,122,121,120],"class_list":["post-913","post","type-post","status-publish","format-standard","has-post-thumbnail","hentry","category-blog","category-slider","tag-blog-2","tag-cronica","tag-europa","tag-migracao","tag-refugiados"],"yoast_head":"\n