1965. Nem me lembro se j\u00e1 havia completado 14 anos. Deixo a sala quente do Cine Moderno, no Crato, ap\u00f3s a sess\u00e3o das 16h30. Escureceu e a temperatura amena do lado de fora causa al\u00edvio. Estou sozinho, sinto-me perturbado e sem condi\u00e7\u00f5es de compreender o que vi. Habituara-me \u00e0s refer\u00eancias do cinema americano, \u00e0 Igreja Cat\u00f3lica, aos rituais da Semana Santa, quando as r\u00e1dios tocavam m\u00fasica cl\u00e1ssica e as salas de proje\u00e7\u00e3o exibiam filmes antigos e prec\u00e1rios sobre a Paix\u00e3o de Cristo. \u201cO Evangelho Segundo S\u00e3o Mateus\u201d fugia aos meus padr\u00f5es cinematogr\u00e1ficos, parecia diferente at\u00e9 mesmo de \u201cO Leopardo<\/a>\u201d, que eu assistira numa sess\u00e3o noturna de domingo, no mesmo cinema superlotado e sufocante. Ainda n\u00e3o me ligava em nomes de diretores, sentia-me atra\u00eddo por astros e estrelas. Mas, no \u201cEvangelho\u201d atuavam apenas artistas amadores e pessoas do povo, um choque para os padr\u00f5es da \u00e9poca. Descobri afinidades com o teatro popular da tradi\u00e7\u00e3o caririense. Pela primeira vez constatava que os bens de cultura eram comuns a todos os povos.<\/span><\/p>\n

1968. Buscava filmes de impacto, mesmo incompreens\u00edveis. \u00c0s vezes era derrotado pelo cineasta ou pelo p\u00fablico, como aconteceu na sess\u00e3o do filme \u201cA chinesa\u201d, do franc\u00eas Jean Luc Godard<\/a>. Profundamente irrealista, supostamente tratando do racha entre o comunismo chin\u00eas e o russo, o filme provocou curto circuito nos c\u00e9rebros prosaicos dos cin\u00e9filos cratenses. Depois de meia hora de proje\u00e7\u00e3o, no Cinema Cassino, todos abandonaram a sala e ocuparam o hall do velho sobrado. Uma chuva forte interditava a pra\u00e7a Siqueira Campos, em frente, e o Caf\u00e9 L\u00edder, \u00e0 esquerda. As pessoas preferiam olhar a chuva e os rel\u00e2mpagos cortando o c\u00e9u, a assistir a pel\u00edcula projetada. Era uma quarta-feira, sess\u00e3o \u00fanica das 19h30. Sozinho na sala, sem compreender nada do que via, fui abordado pelo bilheteiro. <\/span><\/p>\n

\u2013 Vamos desligar o projetor.\u00a0<\/span><\/p>\n

\u2013 Por qu\u00ea? <\/span><\/p>\n

\u2013 Todo mundo foi embora.<\/span><\/p>\n

Levantei-me aliviado. Ainda n\u00e3o conhecia Jorge Luis Borges, nem sua declara\u00e7\u00e3o de que abandonava os livros, se n\u00e3o gostasse deles. Eu n\u00e3o alcan\u00e7ava a linguagem do filme, mesmo assim teimava em continuar assistindo. Sa\u00ed para o tumulto do hall e engrossei o n\u00famero de espectadores dos fen\u00f4menos naturais. Parec\u00edamos felizes com nossa escolha, lamentando apenas n\u00e3o termos um bom caf\u00e9. A noite ficou c\u00e9lebre pela recusa cratense ao cinema de Godard, pelo cataclismo que arrasou a cidade e por uma trag\u00e9dia. Ao atravessar a rua da Vala, uma jovem caiu dentro do canal e foi arrastada pelas \u00e1guas turbulentas. Seu corpo encontrado no meio de um canavial tinha sido destro\u00e7ado pelos choques com as pedras e os troncos das \u00e1rvores.\u00a0<\/span><\/p>\n

1969. No Recife, onde me preparo para o vestibular de medicina, leio e coleciono os suplementos culturais do Jornal do Com\u00e9rcio. Celso Marconi enche minha cabe\u00e7a de cinema novo, neo-realismo e nouvelle vague<\/i>. S\u00e3o tempos de inicia\u00e7\u00e3o. A cidade s\u00f3 falava no filme \u201cTeorema\u201d, do diretor italiano Pier Paolo Pasolini. Descubro ser o mesmo que havia inquietado o adolescente provinciano com sua leitura do Evangelho de S\u00e3o Mateus.\u00a0 <\/span>Nesse tempo, ia-se ao cinema com devo\u00e7\u00e3o.\u00a0 <\/span>O Recife possu\u00eda salas para filmes de arte \u2013 Coliseu e AIP \u2013 e sess\u00f5es exclusivas no S\u00e3o Luiz, Veneza, Art Pal\u00e1cio, Ritz e Astor. As filas desceram a conde da Boa Vista quando foram exibidos no cinema S\u00e3o Luiz, em temporada de semanas, \u201cRoma\u201d e \u201cMorte em Veneza\u201d, e at\u00e9 o \u201cSatyricon\u201d, de Fellini,. Mas, poucos filmes causaram tanto estupor na sociedade recifense como \u201cTeorema\u201d. Talvez, \u201cO \u00daltimo Tango em Paris\u201d ou \u201cO Imp\u00e9rio dos Sentidos\u201d, com abordagens sexuais escandalosas para a \u00e9poca.<\/span><\/p>\n

Em Teorema, o n\u00facleo de conflitos \u00e9 uma fam\u00edlia burguesa. Pai, m\u00e3e, filhos e empregada n\u00e3o ser\u00e3o os mesmos, depois que um visitante anunciado por um anjo atravessa suas vidas. De forte conota\u00e7\u00e3o simb\u00f3lica, cada personagem representa um segmento da sociedade italiana, exposta em suas fragilidades. Viv\u00edamos no Brasil o per\u00edodo mais repressivo da ditadura militar, a Igreja Cat\u00f3lica pregava a teologia da liberta\u00e7\u00e3o, o feminismo assentava suas bases e, atrav\u00e9s da contracultura, ensaiava-se uma revolu\u00e7\u00e3o sexual. Terreno f\u00e9rtil \u00e0s ideias de Pasolini, um mundo dicotomizado em fascismo e comunismo, direita e esquerda, deus e diabo, bem e mal. Explosivo para o Recife socialmente desigual, colonialista, escravocrata, machista, de economia calcada no modelo falido dos engenhos e usinas de a\u00e7\u00facar. Os cinemas exibiam a bomba \u201cTeorema\u201d e a radioatividade se propagava em ondas, contaminando at\u00e9 os que n\u00e3o assistiam ao filme.\u00a0 \u00a0<\/span><\/span><\/p>\n

1975. Pasolini \u00e9 assassinado. Ninetto Davoli, o ator que interpretara o anjo da anuncia\u00e7\u00e3o em \u201cTeorema\u201d, reconhece o corpo destru\u00eddo. Durante 40 anos a tr\u00e1gica hist\u00f3ria se reconta em diferentes vers\u00f5es.\u00a0 <\/span>Giuseppe (Pino) Pelosi, o assassino confesso, negar\u00e1, anos depois, que tivesse sido o \u00fanico executor. Surgem teorias conspirat\u00f3rias. Pino se confessa v\u00edtima. Antes de morrer, Pasolini renegara sua \u201cTrilogia da Vida\u201d \u2013 \u201cDecameron\u201d, \u201cOs Contos de Canterbury\u201d e \u201cAs Mil e Uma Noites\u201d \u2013, por sentir-se v\u00edtima do capitalismo e da ind\u00fastria cinematogr\u00e1fica. Em alguns pa\u00edses e em algumas telas projetam a derradeira cria\u00e7\u00e3o, a mais censurada de todas: \u201cSal\u00f3 ou os 120 Dias de Sodoma\u201d, apontamentos sobre os requintes mais perversos do sadismo e do masoquismo. Nesse filme preferido por Glauber Rocha est\u00e3o indica\u00e7\u00f5es para o futuro mart\u00edrio de Pasolini. <\/span><\/p>\n

Nunca assisti \u201cSal\u00f3\u201d. Os cinemas do Recife se transformaram em supermercados e n\u00e3o consigo ver filmes em shoppings. Preciso de alguns encantamentos que j\u00e1 n\u00e3o existem nas salas de cinema. Sou igual \u00e0 ing\u00eanua Cec\u00edlia, hero\u00edna do filme \u201cA Rosa P\u00farpura do Cairo\u201d, de Wood Allen<\/a>. Sempre me perco dentro dos enredos e me transformo nos personagem projetados nas telas.<\/span><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

1965. Nem me lembro se j\u00e1 havia completado 14 anos. Deixo a sala quente do Cine Moderno, no Crato, ap\u00f3s a sess\u00e3o das 16h30. Escureceu e a temperatura amena do lado de fora causa al\u00edvio. Estou sozinho, sinto-me perturbado e sem condi\u00e7\u00f5es de compreender o…<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":918,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"content-type":"","footnotes":""},"categories":[8,45],"tags":[14,44,53],"class_list":["post-917","post","type-post","status-publish","format-standard","has-post-thumbnail","hentry","category-blog","category-slider","tag-blog-2","tag-cinema","tag-cronica"],"yoast_head":"\n