Eu sou do tempo da folha corrida da pol\u00edcia. Um documento sem muito significado hoje, mas que nos anos de ditadura era um verdadeiro terror. A Secretaria de Seguran\u00e7a P\u00fablica emitia o tal documento. Para se ter acesso \u00e0 Universidade, ou qualquer outro servi\u00e7o p\u00fablico, precis\u00e1vamos comprovar os nossos bons antecedentes pol\u00edticos e sociais. Sempre experimentei um p\u00e2nico, quando solicitava a minha folha, numa delegacia. E se eu tivesse cometido algum crime, de que nem me lembrava? Sou son\u00e2mbulo e tenho as minhas puls\u00f5es. E tamb\u00e9m costumava pensar e expor os meus pontos de vista. Quem me garantia a absoluta idoneidade? Naqueles tempos nebulosos \u00e9ramos sempre culpados, at\u00e9 prova em contr\u00e1rio. De qualquer coisa, por menor que fosse. Como todo cat\u00f3lico, que no ato de contri\u00e7\u00e3o confessa ter pecado muitas vezes por pensamentos, palavras e obras. A folha corrida era o nosso Auto de F\u00e9.<\/span><\/p>\n

Um amigo foi preso por equ\u00edvoco. Tamb\u00e9m foi espancado por equ\u00edvoco e penou para conseguir uma folha sem m\u00e1cula, que lhe desse direito ao ingresso na Universidade. Humilhavam-nos todos os anos, para fornecerem a prova da nossa inoc\u00eancia. Humilha\u00e7\u00e3o maior s\u00f3 mesmo o atestado de que \u00e9ramos pobres na forma da lei. Parece mentira, mas existia esse documento perverso, exigido para se ter acesso a bolsas de estudo e \u00e0 resid\u00eancia universit\u00e1ria. Aos juizes, bispos e delegados se outorgava o poder de afirmar a nossa pen\u00faria. Quem morava na Casa do Estudante, anualmente, tinha de\u00a0 <\/span>dobrar-se diante de um merit\u00edssimo, ou beijar o anel de algum bispo para merecer a sua assinatura, numa folha de papel datilografado, com os dizeres: atesto que fulano de tal \u00e9 pobre na forma da lei.\u00a0 <\/span>Por sorte, quase todos os cidad\u00e3os brasileiros se tornaram miser\u00e1veis fora da lei, e esse atestado foi proscrito. Agora, basta provar que \u00e9 brasileiro.<\/span><\/p>\n

A sele\u00e7\u00e3o para a Casa do Estudante Universit\u00e1rio n\u00e3o se fazia por crit\u00e9rios intelectuais, por aptid\u00f5es cient\u00edficas, filos\u00f3ficas ou art\u00edsticas. Escolhiam-se os n\u00e3o transgressores, sem voca\u00e7\u00e3o pol\u00edtica e que preferentemente n\u00e3o pensassem. Nas longas entrevistas com uma assistente social bocejante, represent\u00e1vamos o papel de bons rapazes, educados nos princ\u00edpios crist\u00e3os, preocupados com um futuro de sucesso financeiro. Repet\u00edamos um texto decorado, que n\u00e3o feria os princ\u00edpios do golpe de 64. Dever\u00edamos parecer med\u00edocres e ser pobres na forma da lei. <\/span><\/p>\n

A hist\u00f3ria recente do Brasil j\u00e1 rendeu can\u00e7\u00f5es de protesto, versos camuflados, torturas, mortes, e ainda provoca revolta ou tiradas de humor bufo. De t\u00e3o absurda parece mentira. Leon Tolstoi, no livro Guerra e Paz, arrisca-se a falar do car\u00e1ter de alem\u00e3es, franceses, italianos, ingleses e dos pr\u00f3prios russos, pelo tra\u00e7o de seguran\u00e7a que cada um expressa. O russo, afirma, est\u00e1 seguro de si mesmo porque n\u00e3o sabe de nada, e de nada quer saber e porque n\u00e3o cr\u00ea que se possa conhecer perfeitamente o que quer que seja. Um pouco parecido conosco. O talento para a farsa j\u00e1 nos rendeu muitas defini\u00e7\u00f5es de brasilidade, mas ainda precisamos inventar ep\u00edtetos e conceitos que melhor definam o car\u00e1ter nacional.<\/span><\/p>\n

Para que n\u00e3o se desperdice a larga experi\u00eancia burocr\u00e1tica acumulada do Imp\u00e9rio \u00e0 Rep\u00fablica, sugiro que se reinstitua a folha corrida da pol\u00edcia para os candidatos pol\u00edticos. Que eles provem bons antecedentes, total isen\u00e7\u00e3o nos desvios de verbas, tr\u00e1fico de droga e outras falcatruas. E que ao final de cada mandato, apresentem um atestado de pobreza pela forma da lei, onde n\u00e3o constem as gordas contas banc\u00e1rias nos para\u00edsos fiscais. E que provem tamb\u00e9m, que o atestado n\u00e3o foi uma negociata com juizes, bispos e delegados de pol\u00edcia. Assim, essas j\u00f3ias da burocracia nacional, que serviram para transformar os oprimidos em doidos, voltar\u00e3o ao pleno uso.<\/span><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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