O carnaval quase n\u00e3o mudou nos temas reais e simb\u00f3licos que o definem: carne, bebida, sexo e viol\u00eancia. Para os italianos, \u00e9 da palavra carne que vem o seu nome \u2013 carnevale<\/i><\/a> \u2013, significando vale comer carne. Precedendo os dias magros da quaresma, cujos s\u00edmbolos eram um homem esquel\u00e9tico e um peixe magro, pendurado na ponta de uma vara, o carnaval era a festa do excesso, da opul\u00eancia, da fartura. <\/span><\/p>\n

No Brasil de hoje, o vale comer carne se refere mais a outras carnes, cuja degusta\u00e7\u00e3o n\u00e3o implica necessariamente em canibalismo, apesar do nosso passado antropof\u00e1gico. Os apelos tur\u00edsticos s\u00e3o para outros paladares. E a a\u00e7\u00e3o do verbo n\u00e3o passa pelos maxilares. <\/span><\/p>\n

Com o fracasso do Fome Zero, n\u00e3o deixa de ser um risco exibir carnes t\u00e3o provocantes. Os famintos podem acabar com a festa. Ainda bem que mudamos significados e valores. Expomos o nosso corpo rebolante, no asfalto ou em carros aleg\u00f3ricos, n\u00e3o importa. Interessa ser visto, a qualquer pre\u00e7o. Ocultar-se? Brincar an\u00f4nimo como faziam os pr\u00edncipes italianos?\u00a0 <\/span>Est\u00e1 louco? No nosso carnaval, as m\u00e1scaras perderam a fun\u00e7\u00e3o.<\/span><\/p>\n

Mundo de cabe\u00e7a para baixo, quando a cabe\u00e7a do mundo era para cima. No carnaval, o rei sa\u00eda disfar\u00e7ado no meio do povo e um campon\u00eas ostentava uma coroa. Hoje, os pol\u00edticos fazem quest\u00e3o de mostrar-se em palanques oficiais ou camarotes de luxo. Nas gravuras antigas, os homens aparecem vestindo roupas femininas e as mulheres de cal\u00e7as, botas, chicote na m\u00e3o, fumando charuto e dando ordens. Os velhos s\u00edmbolos da invers\u00e3o sexual foram para os ba\u00fas e o que era exclusividade do carnaval virou rotina. <\/span><\/p>\n

Para que servem os tr\u00eas dias de carnaval?\u00a0 <\/span>Dependendo da cidade do Brasil, podem ser trinta ou sessenta. Controle social? Fuga de um cotidiano miser\u00e1vel? Reuni\u00e3o de classes e culturas, celebrando a alegria e o prazer? A democracia do carnaval, cantada em marchas e sambas, existe mesmo? Curada a embriaguez alco\u00f3lica \u00e9 poss\u00edvel o reencontro dos homens e mulheres que se abra\u00e7avam como foli\u00f5es?<\/span><\/p>\n

Um cord\u00e3o de isolamento divide os brincantes, no carnaval de Salvador. Quem paga caro, brinca protegido do pov\u00e3o, atr\u00e1s do trio el\u00e9trico. Mas alguma coisa mudou, \u00e9 bem verdade. Em Pernambuco, a brincadeira de Cavalo Marinho pedia licen\u00e7a ao senhor de engenho para se apresentar no terreiro da casa grande. Hoje, um mestre rabequeiro toca ciranda num palanque, e os antigos senhores dan\u00e7am no meio da rua.<\/span><\/p>\n

Valorizou-se a arte popular com o olho no turismo e no mercado do ex\u00f3tico. A realidade social da maioria dos brincantes mudou bem pouco. Muitos ainda s\u00e3o transportados para os desfiles em carrocerias de caminh\u00e3o. Do mesmo jeito que se transporta a cana e o gado. Eles cumprem a obriga\u00e7\u00e3o e refazem o caminho de volta \u00e0s casas de taipa, onde vivem.<\/span><\/p>\n

Os poetas cantam as alegrias e dores do carnaval. E os foli\u00f5es enchem a cara para transformar a realidade num sonho de tr\u00eas dias. Sem \u00e1lcool, os olhos enxergam as imagens em preto e branco, as diferen\u00e7as entre as pessoas que brincam. Descobrem que em algumas cidades estabeleceram espa\u00e7os nas avenidas, definiram fronteiras. Os cortejos reproduzem uma falsa democracia social, a perigosa conviv\u00eancia entre ricos e pobres. <\/span><\/p>\n

Flechas, lan\u00e7as e espadas s\u00e3o todas aleg\u00f3ricas no carnaval. Nenhuma dessas armas ataca de frente a realidade do brincante. Vivemos em clima de guerra civil, separados em campos de batalha, em morros e condom\u00ednios fechados, favelas e pr\u00e9dios de luxo, palafitas e Lago Sul. Mas no carnaval, as investidas dos brincantes s\u00e3o pac\u00edficas, os ataques feitos ao passo de dan\u00e7a e as embaixadas po\u00e9ticas. Tudo um faz de conta.<\/span><\/p>\n

\u00c9 pra chorar ou comemorar?<\/span><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

O carnaval quase n\u00e3o mudou nos temas reais e simb\u00f3licos que o definem: carne, bebida, sexo e viol\u00eancia. Para os italianos, \u00e9 da palavra carne que vem o seu nome \u2013 carnevale \u2013, significando vale comer carne. Precedendo os dias magros da quaresma, cujos s\u00edmbolos…<\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":965,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"content-type":"","footnotes":""},"categories":[8,45],"tags":[],"class_list":["post-964","post","type-post","status-publish","format-standard","has-post-thumbnail","hentry","category-blog","category-slider"],"yoast_head":"\n