14 jul Medéia e o movimento feminino
No filme de Pasolini, Medéia olha o corpo adormecido de Jasão e sente-se perdida. Nem Eurípides, nem Sêneca referem os pensamentos da mulher, ao avistar o estrangeiro que veio da Grécia para roubar o Velo de Ouro, uma pele de carneiro que os habitantes da Cólquida adoravam. Os dois poetas narram que a princesa se apaixonara ao ponto de trair o seu povo e matar o próprio irmão, quando fugia com o argonauta. Além da distância geográfica, crenças e costumes separavam os mundos de Medéia e Jasão. Na Cólquida, mais a oriente, a natureza e seus fenômenos ainda eram sagrados; na Grécia, buscou-se a explicação do mundo pela ciência.
Na noite em que se entregou ao belo Jasão, Medéia fugiu da tenda de peles de cabra, onde se abrigavam, e correu como louca pelos campos desertos. Implorava à Terra, à Lua e ao Sol que a ouvissem. Mas os astros, com os quais costumava falar, não respondiam. A feiticeira já não tinha poderes, esquecera sortilégios ao se apaixonar pelo homem estranho aos seus rituais. Agora, se encaminhava sozinha para um mundo sem magias, onde seria vista como estrangeira e inimiga.
Cansada de suplicar aos astros, Medéia retorna à tenda, onde Jasão dormia. Contemplou pés, joelhos, coxas, peito e ombros, as curvas nas quais se extraviara. Pensou no que deixaria para trás e lhe ocorreu que ao se desfazer dos mistérios, se desfizera do melhor de si mesma. Olhou o rosto de Jasão, o pomo saliente do pescoço, e teve a irremediável consciência de que já não podia retornar à Cólquida. Iluminada por uma candeia, despiu a túnica, o véu, os colares, as pulseiras, as sandálias e guardou-os numa arca. Em seguida, vestiu-se como se fosse uma mulher grega.
O que a aguardava? Fez essa pergunta como se estivesse no limiar de uma nova porta. Valeria a pena transpô-la? A experiência do novo pressupõe a morte de crenças antigas. Seduzida por Jasão e pelo desejo do desconhecido, partira em busca de um mundo que apenas sonhara. Há muitos anos, do ocidente para o qual ela se dirigia, viera a pele de carneiro. O seu povo a adorava, atribuindo-lhe um significado mágico. Mas para os argonautas gregos que se atreviam a roubá-la, significava apenas glória e poder.
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Medéia morou com Jasão e lhe deu três filhos. É possível que ele não a tenha amado e é certo que nunca compreendeu seus modos estranhos. Ela se esforçava em parecer uma grega, mas nunca deixou de nutrir as paixões do mundo arcaico em que vivera. E se o que dorme no íntimo das pessoas apenas aguarda o momento de ser desperto, não demorou para que esse dia chegasse.
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Jasão apaixonou-se pela princesa Glauce, filha de Creonte, rei de Corinto, e pediu-a em casamento. Creonte comunica a Medeia sua decisão de expulsá-la do reino, manda que ela e os filhos partam imediatamente e avisa que irá certificar-se de sua ida. Medéia procura o marido e o encontra se exercitando em lutas com outros rapazes. Ao reconhecer o rosto e as coxas que a atormentam, sente o mesmo incômodo que sentira na primeira noite em que percorreu com os olhos embriagados o corpo nu de Jasão.
A caça sucumbe à armadilha uma primeira vez. Se escapa e se deixa apreender uma segunda vez, é porque gosta do sacrifício. Medéia conhecia as armadilhas do amor. Mandou chamar Jasão no palácio da rival e queixou-se de abandono. O marido garantiu que se casava por causa dos filhos, para assegurar-lhes cidadania e proteção. Medéia implorou que Jasão a possuísse uma última vez. Urdia uma vingança e dissimulava o ódio com falsa ternura. Jurou ao marido que o perdoava e desejou-lhe felicidade.
Quando ele foi embora de casa, Medéia despertou do sonho em que vivera desde que se apaixonara. Correu enlouquecida pelos campos, evocou o sol e pediu que falasse novamente com ela. O astro brilhou com um vermelho estranho, que apenas Medéia conhecia. Os sortilégios retornaram à feiticeira e ela pôde usar suas mágicas. Desenterrou os antigos pertences, as roupas e joias que trouxera da Cólquida. Mandou-as pelos filhos de presente a Glauce e suplicou que ela as usasse.
Se a luz é um bem para os homens, porque sem ela nada enxergamos, seu excesso pode matar. O resto dessa história são incêndios. Quando vestiu a roupa, Glauce ardeu em chamas e se atirou dos muros da cidade. O pai, na esperança de salvá-la, sofreu o mesmo destino. Medéia assassinou os filhos e ateou fogo na casa. Jasão correu para junto das crianças, mas era tarde. Medéia fugia numa carruagem puxada por um dragão e do meio das chamas o insultava.
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Zeus, do alto do Olimpo, determina o rumo de muitos acontecimentos. Muitas vezes os deuses enganam nossas previsões na execução de seus desígnios. O que se esperava não acontece. E um deus franqueia o caminho aos acontecimentos menos previsíveis.
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